© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 31 de março de 2015

o pretexto

Desabafa-me que tem um marido ligeiramente intempestivo. Não trabalha, passa muito tempo desocupado, e por isso tem todas as horas do dia para a esperar na porta do trabalho, para se encostar na taberna e beber muito, para se esquecer dos filhos na escola e para desaparecer noites inteiras, com os amigos e algumas amigas. Não se importa com esta última. A única coisa que precisa é do sossego da noite, do silêncio dos móveis, da cama vazia. Houve um tempo em que sonhava com a mudança dele. Imaginava que com a idade talvez o génio acalmasse, talvez a desconfiança serenasse, podia ser que os quilos a mais e as rugas de expressão o deixassem sossegado quanto aos homens que toda a vida a olharam de soslaio, de frente, discreta ou directamente. Sonhava ainda em tê-lo só para ela, em encontrar-se com ele todas as noites na cama, em contarem as mesmas horas, os mesmos segundos, em escutarem os mesmos ruídos, em ficarem em silêncio, à espera que o corpo sossegasse do encontro. Hoje, descobriu, já não quer nada disso, hoje o que precisa é da continuidade da solidão. Não me consegue explicar bem o porquê, mas sabe de fonte segura que já não precisa de amor, e portanto diz-me, olhos nos olhos, que a única coisa que queria era que ele arranjasse um trabalho. Não por ela, habituada que está aos olhos da vigilância, mas pelos filhos. Não suporta a ideia deles serem esquecidos por um pai distraído, é muito mais fácil explicar a teoria de um pai ocupado. Percebo-a, percebo-a na perfeição. A ocupação atenua todas as culpas, todas as distracções, todos os esquecimentos e todos os desvios. Precisamos dela, em nós e nos outros, para que o mundo gire na perfeição do pretexto. 

6 comentários:

  1. Não sei o que é ter um marido desempregado....o meu trabalhou sempre muito e demais. Mas o problema foi quando a reforma veio.
    A solidão do gabinete e das salas de audiência passou a ser vivida em casa....

    E mais não digo. mas custa muito.

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    1. Os extremos são sempre perigosos, Virgínia...

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  2. Infelizmente um belo texto. Joana

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  3. C.F., os pretextos dão-nos realmente muito jeito. Sem eles, nos momentos mais difíceis da vida, teríamos de olhar o mundo através de uma lente crua e despiedada. É com eles que encobrimos o incómodo de certas verdades que não queremos ver e alimentamos a resignação perante aquilo que não queremos, podemos ou sabemos mudar.
    Um beijinho

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    1. Sei disso, Miss Smile, mas por vezes tenho necessidade da lente crua. Diria até que preciso dela, com uma certa regularidade...

      Um beijinho também para si :)

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