© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 19 de março de 2015

Pais incógnitos

Postal retirado daqui

Na década de quarenta do século passado, Viana do Castelo era uma cidade virada para o Atlântico. De lá saíam os mais importantes bacalhoeiros do país rumo ao Mar desejado da Terra Nova. Por incrível que pareça, a indústria da pesca, tal como os famosos estaleiros navais contruídos em 1944, constituía um dos maiores pilares da economia de toda aquela região do Alto Minho. A cidade formigava com o pequeno comércio, com as feiras e praças de rua, os caixeiros-viajantes, os apitos ensurdecedores dos amoladores de facas e, nas alturas festivas, com os circos ambulantes. Pelas ruas empedradas cruzavam-se pequenas carroças de burros com discretas charretes e, de vez em quando, lá surgia um robusto automóvel seguido pelas correrias e gritarias alegres da criançada.
 
Neste cenário de esperança pós Grande Guerra, seguia pelas ruelas um casal de irmãos sempre de mãos dadas, muito apertadas, de andar curvado mas ágil aos saltinhos. Consta que ele chamava-se Nicolau e ela Adelaide, consta, ainda, que ficaram órfãos de mãe, pois o pai sempre foi incógnito. Eram abordados por muita gente enquanto passavam, uns brincavam com eles, outros troçavam, outros faziam-lhes perguntas para os ouvirem falar, outros, ainda, desviavam a cara curiosa.
 
Fisionomicamente eram diferentes, assemelhavam-se a antropóides, sim, pareciam símios; os braços mais longos do que as pernas, a pele toda coberta de pelos pretos, as testas recuadas e os narizes achatados não desmentiam: pareciam macacos. Sofriam de uma deficiência nunca cientificamente explicada para além de lendas e boatos, muitos mexericos e contos. O mais conhecido remonta a uma mulher da vida, de vida miserável, que depois de saber-se grávida terá exclamado não querer ter filhos e se acaso os tivesse, então que fossem macacos.
 
Lalau e Laidinha (foi por estes nomes que ficaram conhecidos) nunca se separavam e quanto mais espicaçados pela turba gingona, mais o irmão se insurgia violento. Eram para os locais uma parelha de aberração circense andante e antes que algum empresário do ramo lhes visse fonte de muitos reis, foram acolhidos pela Congregação da Nossa Senhora da Caridade. Em boa verdade, na época, tudo o que era diferente deveria ser escondido, era uma vergonha impedida de ver o sol do dia. Era uma prática comum em terras do Alto Minho.
 
Claro que hoje seria abertura de noticiários, fonte de dissecação cientifica ou, não me espantaria nada, a maior macacada na cabeça dos realizadores e no topo das audiências da casa dos segredos.
 
Lembro-me deste caso desde os meus tempos de infância em que a minha querida Odete, filha da criada da minha avó, que veio com os nubentes, meus pais, para Lisboa, me contava para eu comer quando estava mais enfastiado. Revivi, anos mais tarde, a história dos manos num artigo de fundo numa edição do jornal "A Aurora do Lima". E, ontem, em conversa com o director deste jornal, com cento e sessenta anos de existência, amigo da minha mãe, Bernardo Barbosa, pessoa mui estimada e amável, solicitei o citado artigo do arquivo que lera há mais de vinte e cinco anos. Infelizmente, aquela edição não está digitalizada mas, mal tenha disponibilidade, irei pessoalmente a Viana tentar encontrá-la. Por enquanto, ficou a promessa de uma fotografia e outros detalhes. Deficientes ou não, foram duas vidas humanas que nasceram, viveram, sentiram, sofreram e morreram.
 
De resto muito pouco se sabe (se fizerem uma busca por um qualquer motor de pesquisa, não encontrarão nada), é um segredo que Viana não se orgulha nem alimenta, um caso esquecido, como tantos outros, com pais incógnitos.

13 comentários:

  1. Impressionante como o filme O Homem Elefante. Os deficientes ainda hoje são ostracizados, mesmo numa sociedade moderna como a nossa. Tudo é moldado para os sãos (?)...

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    1. É verdade, Virgínia. Mas não descansarei enquanto não tirar a limpo esta história tão escondida da luz do dia.

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  2. Nos tempos modernos, infelizmente, nao sei se teriam a sorte de uma Congregaçao os acolher.

    Adoro tudo o que é antigo e velho. Postais como este sao uma delicia. Nao sei bem explicar porquê, mas uma imagem como esta é-me muito mais agradavel que uma imagem moderna de qualquer cidade cheia de arranha-ceus. Por muito que sejam autenticas obras de arte da arquitectura.

    Conhece alguem que no BI tenha escrito Pai Incognito, Paulo? Eu conheço. Há muitos anos. E ainda hoje não entendo o real significado. :(

    Beijo

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    1. Conheço, Maria João. Por mais ilegal que seja... :-(
      Hoje é possível fazer prova da identidade do pai, antes não era. Todos têm um pai e uma mãe e o direito a conhecê-los.

      Beijo

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    2. Não sei o que diz a lei hoje em dia. Há dezenas de anos atrás era legal o registo com Pai Incógnito.
      A normalidade/anormalidade tem muitos lados.
      Desloco-me bastantes vezes a uma fabrica em Aveiro, onde o Director do Departamento de Informática não tem braços. Faz tudo com os pés. Escreve, em papel e no computador, abre as portas, fuma, guia, come na cantina, assoa o nariz  … tudo! A única diferença é o não dar um aperto de mão quando nos recebe. A verdade, não tenho vergonha nenhuma de confessar, é que o primeiro contacto obriga-nos a um certo esforço. Principalmente para não deixar os olhos fugir para ver o que é diferente. Mas pouco depois, a sua normalidade é tanta, que nada parece diferente. Hoje estou tão à vontade com ele como com qualquer outro funcionário da dita empresa. Neste caso, onde está a normalidade e a anormalidade?

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    3. Desde 1977 que não é legal, mas sobre esse tema leia isto, Maria João.
      O Homem, como o animal, está moldado para comunicar com identificações. Quando estas não existem, cabe a ele saber lidar segundo os seus valores éticos e morais. Uns são preconceituosos e incapazes de encaixar a diferença alheia, outros nem por isso. Aí, está tudo na nossa cabeça e formação cívica.

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  3. Existem histórias aparentemente simples que dizem tudo sobre a inteligência de quem as conta. Neste dia do pai mais vale ter ou te-lo tido que nunca o ter conhecido... soberba esta analogia de quem não teve pai e saiu da vida deficiente. Não ponho em causa a veracidade da história, apenas constato emocionada o (a)caso. Obrigada por esta leitura.
    TL

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    1. Tuxa,
      A história é verdadeira, embora com contornos ainda desconhecidos (pelo menos, públicos). Quanto à analogia que refere, não foi no sentido causa-efeito, nem condenatório. Foi antes um acaso, em conversa com o director do jornal.
      Obrigado, eu.

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  4. Este será apenas um de inúmeros casos que muitas localidades escondem com a cumplicidade envergonhada dos ditos normais, que se arrogam o direito de decidir o que é a normalidade. Pobres pessoas, de pai incógnito e de vida incógnita. Pelo menos, tinham-se um ao outro. E, a propósito, lembrei-me do célebre verso que Caetano Veloso canta na música “Vaca profana”, que “de perto, ninguém é normal”.

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    1. Tinham-se um ao outro sim, Miss Smile. Nunca se separaram, nem na Caridade, nem na morte. Segundo a conversa que tive há dois dias com o director do jornal, ocorreram muitos casos escondidos naquela zona... um mistério. E uma miséria de vida, enfim.

      ("... às vezes segue em linha recta/ a vida que é meu bem, meu mal...")

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  5. Impressionante história contada no Dia do Pai, mesmo que sem analogia ou causa efeito.
    Os filhos, mesmo os que antes a lei determinavam como sendo "ilegítimos" - odiosa denominação - são sempre legítimos. Os pais que os não perfilham ou abandonam é que não são...

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    1. Helena,
      Apenas achei importante aquele testemunho num dia tão sensível como o do Pai, nunca mais do que isso. Quanto ao que refere, não podia estar mais de acordo.
      Abraço

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  6. Conheci bem o Toninho Lalau e a sua irmã a Laidinha, nos idos anos 60. O Toninho aguardava os alunos do Liceu que se dirigiam pela linha férrea para essa escola. Pedia cigarros e alguns lhos davam, balbuciava umas palavras ininteligíveis e dava um beijo (babado) na mão do tabaqueiro benfeitor. Caminhava curvado e dava uns pulinhos como os símios, era inofensivo, mas zangava-se se lhe mostrassem uma moeda ou um cigarro e depois o negavam, ficava furioso e debitava um discurso ininteligível. estes irmãos foram o tema da tese de licenciatura do dr Ernesto Galeão Roma iniciador do tratamento da diabetes com insulinoterapia e que era vianense.

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