© Paulo Abreu e Lima

domingo, 22 de março de 2015

vazio

Li um artigo sobre meditação séria e fiquei encantada. Um semana inteira em silêncio, a focar o corpo e a libertar a mente, sentir cada cabelo, cada naco de pele, cada dedo e cada órgão, deve sem dúvida ser avassalador. Lembrei-me de um retiro efectuado numa igreja de Óbidos, no meio da adolescência, rodeada de gente igual a mim. O cozinheiro de vocação conseguiu cozinhar esparguete com atum sem proferir uma palavra, a arrumadora de espaços conseguiu alinhar sacos camas, aquecedores, mantas e cadernos, sem vociferar o que quer que fosse, o padre, sempre atento, rezou para dentro durante toda a estadia, dois dias e uma noite, em que só no segundo era possível partilhar a experiência da purga pelo silêncio. Eu, responsável pela escolha dos temas de pensamento, escrevia-os um por um no quadro de giz. Lembro-me de colocar a fome, o corpo, a guerra, os velhos, e já mais para o fim este mesmo, o silêncio. Sobre todos os outros não emergiu nenhuma verdade improvável. Em nenhum deles surgiu um rasgo de inteligência suprema, uma ideia inédita, um caminho mais fácil para atingir a plenitude do que quer que fosse. Quanto ao silêncio ninguém quis pegar-lhe e fui eu que o agarrei já no final da jornada, também sem ideias brilhantes. Dissequei-o hora por hora, minuto por minuto, segundo por segundo, e fui percebendo, abrangendo e integrando, que o dito alberga um papel preponderante da nossa existência, mas de maneira nenhuma o tinha encontrado. O silêncio, o vazio da voz e do eco, é um lugar longínquo da minha existência, até porque é com palavras que concebo o pensamento. Para um silêncio completo é preciso um não pensar e uma extrema dedicação ao sentir. A hipótese de tentar conseguir este lugar durante uma semana inteira, sem proferir palavras externas e internas, deixa-me curiosa e ao mesmo tempo assustada. Sem o crivo do saber resta-me pouco mais do que o corpo, incursão para a qual não sei se estarei preparada. Posso bem morrer de susto antes de encontrar o que procuro. 

8 comentários:

  1. Tambºem participei em retiros quando era adolescente e o silêncio era quase total. Mais do que o prazer de não ter que falar, a contemplação da paisagem do Tejo junto a Santarém ou da Praia Grande junto ao Rodízio encheram-me a mente e inspiraram-me durante aqueles dias... Conseguia estar uma semana sem falar, mas não consigo estar sem pensar mais do que uns minutos. Tenho tanges palavras na minha mente que saltito de imagens em imagens, sempre numa ebulição constante. Oiço Bartok que é o oposto do silêncio.

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    1. :) Também acho que não consigo esse vazio de pensamento. Diz quem o pratica, se é que esse vazio é mesmo uma possibilidade, que é forte e libertador. Sou curiosa, admito. Até porque acho que em caso de haver, pode mesmo ser terapêutico...

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  2. Carla
    Fiz um workshop sobre "mindfulness" que, de certo modo, tem a ver com a questão do silêncio.
    Antes também pensava que seria difícil acontecerem silêncios prolongados. Hoje sei que há muita gente que não diz uma palavra semanas consecutivas. Estão tão sós que se ninguém lhes falar é no silêncio que passam os dias, os meses, os anos. A vida pode ser muito dura!

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    1. Quando o silêncio é desejado, não sei se será uma questão de dureza, Helena. Não me imagino anos em silêncio, mas numa altura específica, como ritual de conhecimento, faz-me algum sentido. Quanto ao mindfulness, como sabe, é utilizado em psicologia, com alguns resultados. Será mais uma técnica que não excluo, e que gostaria de aprofundar. O stress é um dos flagelos do século, e as técnicas de meditação são uma mais valia de peso...

      Um beijinho para si.

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  3. Muito interessante este tema. Para mim, a meditação é mais um meio do que um fim. Um meio de autoconhecimento sem fim à vista. Faço meditação de uma forma pouco ortodoxa e à minha maneira. Medito não para me esvaziar de pensamentos, mas para os conhecer, compreender e aceitar. Não me envolvo neles, não os julgo e não os censuro. Simplesmente, tento aceitá-los para os poder libertar. E, assim, liberto-me também do pensar, que remete sempre para o passado, porque só consigo tomar consciência do que já pensei há instantes atrás. E para o fazer, preciso de silêncio. O silêncio que cala os pensamentos e me torna vulnerável ao presente. É um exercício muito difícil, muitas vezes votado ao insucesso, mas muito gratificante. Recomendo-o vivamente.

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    1. Houve tempos em que considerei a técnica como uma ferramenta de pouca utilidade. Hoje, parece-me de elevado interesse e muito proveitosa. De forma pouco ortodoxa, como refere, eventualmente faremos todos, com um ou outro objectivo, que poderá ir da libertação da tensão à tomada de uma decisão... Mas é a séria, a consistente e metódica, que começa a atrair-me. Confesso que ando curiosa... :)

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  4. Carla
    Nestes casos que referi trata-se de uma solidão silenciosa, por norma, imposta aos velhos sem família. Ou a quem a família abandonou. Não o quiseram, mas ele impôs-se.
    O silêncio desejado é tão vital quanto a companhia escolhida. Há Ordens Religiosas de silêncio obrigatório. Curiosamente, confesso, não estranho, porque a maior companhia de todos nós, somos nós próprios. E quando lemos, ouvimos música, vemos cinema estamos silenciosamente a conversar com os autores.
    No workshop que fiz não era tanto a técnica que estava em causa, mas sim saber qual o tipo de concentração/esvaziamento de que somos capazes. Fi-lo há três anos, em França e foi-me muito útil.

    Beijinho

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    1. Helena, esse silêncio imposto implica a verdadeira solidão, e isso é realmente terrível... O outro, o que só nos tem a nós por companhia, de forma opcional, é mesmo uma questão vital e de sanidade. Elevá-lo a um protocolo de execução com um objectivo, começa a fascinar-me. É uma novidade, confesso, e por isso estou tão curiosa em aprofundar o assunto...

      :)

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