© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A fisionomia da peta

 
Sem juízos de valor, quem se socorre da mentira, da mentirazinha caridosa ou da grande mentira, vê em cada uma delas uma fuga célere ou uma promessa de resolução. Infelizmente mente-se muito pouco por graça e se o fizermos deixa de ser mentira e passa a ironia. Uma subtileza que faz de mim um delinquente sarcástico, e uma pena tão leve quanto as maiores patranhas com que entremeio frases mais sérias sob o mesmo tom.
 
Brincadeiras à parte, o indivíduo que mente escolhe deliberadamente um escape, uma fuga célere. Ao mendigo que lhe pede esmola – não tenho trocos, só Visa –, ao conhecido que lhe pede um favor – não posso, estou no Vanuatu –, ao amigo que lhe pede dinheiro – vê lá tu que tenho todas as minhas poupanças no Banco Mau. Uma fuga que não compromete nem dá azo a grandes questiúnculas de consciência, pensa o autor. Apenas remete à sua total incapacidade de saber dizer não, não quero, não me apetece.
 
Já resolver problemas recorrendo à inverdade é muito mais ardiloso, requer uma teia articulada e encadeada de pequenas mentiras muito próximas dos factos e das circunstâncias, impregnando-as da consistência das meias-verdades. Requisita associações, quanto mais livres melhores, e colagens à realidade por forma a alcançar uma credibilidade à prova de flagrante intrujice. Há quem o faça amiúde, bem mais do que uma forma de vida, acabando mesmo num estado alternativo de consciência. Como um narcótico ora administrado esporadicamente, ora continuadamente, depende, mas sem marcha atrás. E, volto a repetir, sem juízos de valor.

16 comentários:

  1. É uma interessante reflexão. Na verdade, mente quem diz "eu nunca minto!", porque todos, aqui ou ali, já dissemos pequenas mentiras inconsequentes. Mas há quem minta por tudo e por nada, mesmo quando não há necessidade de o fazer. Uma espécie de vício... Estes mentirosos são facilmente vítimas de si mesmos, porque é fácil, muito fácil mesmo, para qualquer observador atento, apanhá-los nas voltas e reviravoltas das suas contradições. E é até um bocadinho irritante. Porque não deixa de ser uma tentativa, normalmente sem sucesso, de "fazer dos outros parvos".

    (E, se calhar, com juízos de valor. Mas é difícil não os fazer...)

    Beijinho :)
    Por mim, por mais dolorosa que seja a verdade prefiro sempre a sinceridade e a frontalidade de um "não quero, não gosto, não me apetece".

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    1. Isabel,

      O que mais me desconcerta é o viciozinho, o pendor de normalidade onde a mentira ou mentirinha é vezeira, o hábito só porque é supostamente fácil e menor meter a bucha e pensar que ninguém dará por isso. Da outra mentira, com ou sem danos, o problema está no autor e no seu mundo imaginado. O frisson que provoca confina-se apenas ao mentiroso.
      Beijinho :)

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  2. Paulo
    Saber dizer não é quase tão importante como a escolha daquilo a que dizemos sim...

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    1. Helena,
      Escolher dizer sim é muito mais importante e preponderante do que saber dizer não...

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    2. Ai! aqui é que nos desentendemos. Escolher dizer sim é o que quase todos nós fazemos sem saber o que fazemos...
      Saber dizer não ao que quase todos dizem sim é que nos torna gente.
      Apesar disto, eu gosto muito mais da palavra sim do que da palavra não!

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  3. Costumo dizer que não há mentirosos, apenas hábeis criativos :) :) Um bom mentiroso tem por vezes o seu quê de charme sedutor desde que saibamos até onde nos quer levar ,que isto de ser mulher reconhece a léguas quando se atravessa com um muito antes de abrir a boca, é só deixa-los pavonear. Falando a sério, a mentira tem pouco fôlego, nunca chega intata ao fim...

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    1. Já lá dizia Abraham Lincoln:
      "Pode-se enganar todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar todos todo o tempo"

      ps: por favor não leve a mal, mas intacto, com ou sem desacordo ortográfico, ainda leva "c"...

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    2. Paulo, tem toda a razão! Isto de escrever documentos oficiais com AO e textos informais fora do acordo dá nesta coisa dos enganos estúpidos. Para todos os efeitos, considere-me intacta :)

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  4. A mentira, tal como a verdade, é uma construção humana, estando, por conseguinte, sujeita à perceção e representação do real de cada um. Por vezes, a fronteira entre uma e outra é muito ténue, sendo sempre contingente. Aquilo que, para mim, é uma verdade, poderá ser uma não-verdade para o Paulo. Claro que não me estou a referir à mentira intencional, de caráter doloso. Também a nossa própria existência assenta, por vezes, na construção de meias-verdades de conveniência, que nos permitem conviver com certas experiências e escapar a verdades dolorosas. E essas meias-verdades (ou meias-mentiras) que, um dia, nos serviram confortavelmente de verdades, passam mais tarde, com uma mudança de perspetiva ou um ganho de maturidade, a ser encaradas como pequenas (ou grandes) mentiras, que acabamos por rejeitar porque já não precisamos delas. Há certas mentiras que, pejadas de eufemismos, metáforas e enfeites, nos servem de consolo durante uns tempos. Por vezes, é uma questão de sobrevivência. E desculpe se me afastei do tema. É no que dá quando me ponho a divagar :)

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    1. Miss Smile,

      Nem se afastou do tema, nem se pôs a divagar. Em boa verdade, tive de retirar um tempinho para lhe responder de forma condizente. Creio (e corrija-me se estou enganado) que algumas das suas palavras encerram conceitos muito mais específicos do que aparentam. A verdade necessária é uma proposição primordial que não admite contraditório, nem obedece à percepção e representação do real, ou seja, é verdade em qualquer mundo. A verdade contingente já pode ser causal, adveniente da primeira, ou seja, o seu contrário pode ser verdadeiro como falso dependendo das circunstâncias ou do mundo em que se insere. Lógicas matemáticas e filosóficas à parte, referia-me à formação de convencimento no plano jurídico, seguindo o caminho que vai da proposição à produção da prova, passando pelos factos para posterior apuramento da verdade. Quando falo da mentira como forma de fuga, falo dum expediente como forma de não encarar a realidade dos factos. E quando falo da mesma como forma de resolução de problemas, falo duma construção imaginada ou fantasiosa por forma a atalhar e transfigurar o verdadeiro problema. A ideia é resolver, e como se costuma dizer, o que não tem solução resolvido está. Olhe, por mim, ficava aqui a tarde toda com esta conversa - lá está, é como uma verdade contingente: vai até ao infinito para a conseguir provar :)
      Beijinhos.

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    2. Paulo, referia-me essencialmente à verdade contingente e não à verdade necessária que, para mim, é uma verdade objetiva. Concordo que a mentira é uma forma de fuga célere, muitas vezes, condenada à nascença pelo facto de ter pernas curtas ): Quando escrevia o meu comentário, pensava, sobretudo, em Perseu que foi incumbido de cortar a cabeça à hedionda Górgona Medusa, que tinha o poder de petrificar quem a olhasse diretamente. Perseu saiu vitorioso da sua perigosa missão, porque, para o efeito, não olhou diretamente para o rosto medonho da Medusa, mas fitou-a através do reflexo no escudo. Ao encarar a representação (reflexo) de Medusa no escudo, Perseu salvou-se. Era aqui que eu queria chegar quando referi a utilidade das meias-verdades (ou mentiras contingentes), pois há alturas em que a verdade pode petrificar. Para encará-la de uma forma precisa e sem incómodo, é necessário, por vezes, afastarmo-nos dela através de enfeites, eufemismos e meias-verdades (ou simples reflexos). A verdade é muito complexa. É muito maior do que nós. E também eu podia ficar aqui toda a tarde, pois é um prazer conversar consigo :)
      Um beijinho

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    3. A analogia é belíssima, mas não se esqueça que Perseu contava com mais duas ajudas: umas sandálias aladas e um elmo que o tornava invisível aos olhos da Medusa. E agora infiro eu: tal como com as sandálias Perseu podia escapar, a mentira permite a tal fuga célere; tal como a armadura o tornava invisível, a mentira esconde a verdade pela ilusão da resolução de um problema. E, pronto, eis como a mitologia nos concede hábeis formas de interpretação por analogia, maravilhoso :)

      (Continuando, Medusa era uma bela donzela que fora amaldiçoada por Atena, transformando seus lindos cabelos em serpentes e sua bela face numa feiura capaz de petrificar, ou seja, a Verdade afinal era bela...)

      Outro beijinho, o prazer foi todo meu.

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  5. Vejo-me muitas vezes a braços com ela. Porque mentir não é apenas enganar, e por conseguinte faltar à verdade pode ser um problema maior. Quando me pedem opiniões, conceitos, ideias ou direcções, fico muitas vezes entre a espada e a parede, e desenrasco a coisa mais ou menos, depende do contexto e da necessidade de quem me questiona. O mentir por necessidade é delicado. A linha que separa a mentira boa da mentira má é frágil e delicada. Mentir só porque sim, não sou fã, de forma nenhuma, é desprovida de qualquer sentido. Mas vou mais longe e se pensar na génese da mesma penso também no quanto é difícil o ser humano não ser mentiroso. Mentimos tanto aos nossos filhos desde que nascem, que considerando os pressupostos da aprendizagem, depressa compreendemos que não há controlo possível. A minha chupeta, por exemplo, foi comida por um cão. Comer cenouras fazia os olhos bonitos, pirilampos davam dinheiro, e o poço tinha um monstro enorme lá no fundo. Daí em diante, desculpa que te diga, mas tudo é permitido... :)

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    1. O problema é que nem tudo é permitido no plano moral, deontológico e ético, sendo em qualquer um destes planos essencial balizar uma boa de uma má mentira, como tão bem sabes. Pelo que as referências que fazes em relação à aprendizagem e à educação só são possíveis - serão sempre possíveis - fora do conceito stricto sensu da mentira. Aliás, essas pequenas grandes inverdades têm precisamente por objectivo a resolução de problemas mais identificáveis na tenra idade. É muito mais fácil explicar a uma criança os perigos de um poço dizendo que por lá há um monstro do que exemplificar como se pode morrer. No fundo, nem se trata de uma mentira - que a morte é sempre um monstro nestas idades -, mas de uma forma de adequar a linguagem a um ser que não possui a nossa compreensão. Até porque eu próprio consigo produzir a prova para convencimento factual de que a ti as cenouras funcionaram em pleno :)

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  6. Há muita mentira nas verdades que acreditamos. Daí estarmos sempre a perceber/conhecer novas verdades. E o que até há pouco era uma verdade afinal é mentira.
    Mas nada disto é aquela mentira premeditada que a mim me incomoda profundamente. Até demais! A verdade nem sempre é amiga da razão. Mas prefiro as consequências da verdade que aplicar qualquer mentira. Mas não devia. Há mentiras muito mais doces que as verdades e nesses casos deviam prevalecer.
    Assunto complicado e com muitos lados :)
    Beijinho Paulo

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    1. Pois, Maria João, mas toda a mentira é premeditada, caso contrário seria simples engano. Quanto à verdade, essa não se sujeita à lógica da razão, é o que é, facto por facto. Já a mentira (premeditada) obedece a toda uma lógica racional minuciosamente pré-estabelecida. E quanto à doçura, tanto podemos encontrá-la na verdade singela, como na mentira refinada, e vice-versa, que guloseimas há em toda a parte :)
      Beijinho, Maria João.

      ps: deixei um comentário no seu blogue.

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