© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 7 de abril de 2015

a vida, como ela é

Cada vez percebo melhor a extraordinária venda dos romances negros e desafortunados. Estou farta, completamente enfastiada de histórias coloridas, de finais felizes, de contos de fadas e de amor aos molhos a saltar por todos os poros da pele. Já não aguento a perfeição excessiva das toilettes das festas, dos penteados armados e arrumados, das férias deliciosas e das refeições apetitosas. Não há dia em que não encontre nos mais fantásticos lugares o esparguete al dente, o passeio au point, a sobremesa délicieux, a família perfetta, a sintonia mais do que plena entre todas as constelações do universo que se uniram em debandada, tudo a convergir no local exacto onde algumas, poucas pessoas, devem viver rodeadas da sorte. Não tenho nada contra momentos felizes. Sou uma acérrima defensora da felicidade. Pratico diariamente as estratégias apregoadas pelas teorias da educação para o optimismo, e acredito, profunda e piamente, nas energias positivas e na boa onda. Mas por vezes, com relativa frequência, preciso de cheirar realidade. Preciso de encontrar pessoas que espirram, choram e cospem, e mulheres desmaquilhadas, com pêlos nas pernas e calosidades nos pés. Preciso de olhar com os meus olhos para gente que se assoa, que tem preso num dente um enorme pedaço de alface, gente que cai e se levanta, com o joelho esfolado e o nariz arranhado. Preciso de sentir a rudeza da dor, a crueldade da vida, a fome da doença e o devaneio da loucura. Preciso de olhar para pessoas com vísceras e com sistema circulatório, respiratório, endócrino, urinário e digestivo. Preciso de ver velhos que perdem dentes ao sorrir e miúdas que se afligem com a vinda da mocidade. Não aprecio, cada vez aprecio menos a perfeição do linho onde não cai uma nódoa, como se a vida, a verdadeira vida, a vida real, fosse limpa e cândida como uma fotografia seppia. Como se nascêssemos, vivêssemos e acabássemos, sem a sujidade do sexo, o sangue do parto ou o cheiro da morte.

No fundo, mesmo que em doses moderadas, todos precisamos dela. E nas histórias, dói sempre um bocadinho menos. 

6 comentários:

  1. C.F., que texto tão bonito e sincero! Parece que quanto menos humana for mostrada a natureza humana, mais apreciada ela é :) Mas é a estilização da vida sob a aparência da forma perfeita que nos afasta da sua essência. A felicidade nem sempre está na perfeição. E a felicidade é um retalho, um frémito, um segundo que nenhuma câmara consegue apreender por mais extraordinário que seja o fotógrafo. A verdade não está na moldura e não há nenhuma moldura que salve um quadro que não tem autenticidade.
    Um beijinho

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    1. Lindo e verdadeiro está o seu comentário, Miss Smile. Obrigada... :)

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  2. Magnífico texto ainda que não tão real como isso. Basta andar aqui nos autocarros do Porto para nos darmos conta de toda uma outra realidade, bem crua e até "disgusting", como diriam os ingleses. Na TV é tudo clamoroso, mas na vida há muito mais miséria moral e física do que a nossa mente concebe.
    Olharmo-ns ao espelho tb ajuda a descobrir as imperfeições e a objectivar a nossa apreciação. Tb sou apologista do optimismo, mas há muito que não consigo olhar para os dias cinzentos como se fossem soalheiros...
    Bom fim de semana CF!

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    1. Refiro-me essencialmente ao que as pessoas fazem questão de mostrar, Virgínia, nas televisões e nas redes sociais. É claro que a vida real não é assim... Por isso me confunde tanto esta necessidade de mostrar a perfeição...

      Obrigada. Um bom fim de semana.

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    2. Nas redes sociais não se pode contradizer ninguém. Tem de se dizer Amen a tudo e todos senão levamos com uma rabecada e nunca mais nos falam!!! É incrível a lamechiche e bajulice que aparecem no FB e nos blogues, embora estes sejam mais reais, na minha opinião. O ciberespaço é um lugar estranho ...

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    3. Se agirmos com cautela, julgo ser possível habitá-lo. Damos é de frente com estes exageros, mas também tem coisas boas... Temos de escolher e virar costas ao que não nos interessa. Bom Domingo Virgínia...

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