© Paulo Abreu e Lima

sábado, 25 de abril de 2015

germana

No meu prédio alguém usa um perfume irrespirável. Sinto-o quando subo a escada, entre  primeiro e o segundo andar, e é tão doce quanto o da velha Germana, a mulher que nunca morreu. Há pessoas que nunca morrem, mesmo quando o mundo se farta delas. Mesmo quando a pele engelha até à mais funda prega, mesmo quando o coração pára por tempo indeterminada, mesmo quando as pernas não andam, as mãos não agarram, a boca não come. Vive rodeada de pérolas falsas e vestidos cor-de-rosa, algures num palacete, perto de Paris. Da última vez que a encontrei fiquei assustada, pois ainda falava. Deu-me quatro beijos e questionou-me sobre a família, agarrou-me no braço com força e eu tive medo de a sentir fria, morta, coberta de pechisbeque. Não aconteceu nada disso, estava morna, temperada, apaziguada, viva, perfumada com a colónia de rosas mais doce do que um chá de jasmim com flores. Não me lembro há quanto tempo foi isso, mas julgo que já se passaram muitos anos. Preferia tê-la esquecido de vez, e a verdade é que estive quase. Foi mulher que se encaixou nas profundezas das minhas memórias, adormeceu e viveu calada, não deu ares de graça, não se sacudiu, não me acenou na vida nem nos sonhos rancorosos, resolveu morrer para mim e deixar-me sossegada. É a vizinha de baixo a culpada deste regresso maldito. É ela que cheira a flores baratas e que me trouxe à memória a velha que nunca morre. É também ela que ousa mandar-me andar devagar em casa, sem saltos, como se um simples acordar ao som de uns passos fosse comparável à memória olfactiva, a mais olímpica de todas as memórias. Gosto muito dos meus vizinhos, apesar de tudo. Fazem-me relembrar que mesmo os velhacos que me morreram para sempre, afinal ainda cá estão. 

6 comentários:

  1. Texto delicioso, Carla.
    Ao invés eu tenho no prédio do lado, alguém que geme. Admito, pelo ritmo, que seja de prazer.
    Como mandá-lo arfar mais baixinho?!
    Bjo

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    1. Obrigada Helena...
      A nossa vizinhança é toda ela um programa, estou a ver... Se calhar não deve mandar, tal como eu não devo mandar a senhora parar de se perfumar... É complicada a vida no mundo das vizinhanças...:)

      Bom Domingo Helena. Um beijo para si.

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  2. Pior é que a vizinha, provavelmente, também é das que nunca morre.

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    1. À primeira vista não me parece, mas olhe que nunca me tinha ocorrido tal hipótese... :)

      Bom Domingo Luísa...

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  3. Enquanto li estive sempre com um sorriso na cara. Que texto tao vivo, tao verdade. Os vizinhos sao isto mesmo. :)
    A unica coisa má é que enquanto li também estive sempre a sentir o raio da agua de colónia do guarda nocturno, que quando faz a ronda deixa um rasto insuportável. Mas se ele morrer vou ter saudades daquele cheirete! Vou, vou. Porque tudo faz parte de estar viva! Por isso sorri e adorei o seu texto.
    Beijinho CF

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    1. A memória olfactiva é cá uma coisa... :)) A propósito, ainda ontem abri um sabonete de violetas. Não foi propositado, foi uma prenda de Natal que só agora viu a luz do dia. Se eu soubesse, já a tinha aberto mais cedo. A minha bisa tinha violetas no jardim. Tal e qual o cheiro do sabonete que agora me inunda de memórias... :)

      Beijinho Maria João...

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