© Paulo Abreu e Lima

domingo, 3 de maio de 2015

mães

Se tudo correr bem, as nossas pessoas são sempre as maiores do mundo. A minha vida teve três mulheres, uma mãe e duas avós. A primeira a partir deixou-me um rolo da massa, um anjo da guarda e o gosto pela culinária. A segunda deixou-me um tapete de Arraiolos, a delicadeza das mãos e alguma vaidade. Sempre me perguntaram qual dessas duas era a minha preferida, mas eu nunca respondi, porque na realidade não sabia. Eram minhas e eu amava as duas, nos defeitos e nas virtudes. Agora, muito mais tarde, depois de as perder, julgo poder dizer que as adoro mais do que nunca. A vida sempre nos ensina o que realmente importa, e que usualmente só vemos melhor quando nos desaparece. Hoje senti a falta delas, na mesa do almoço. A verdadeira, a única que ainda me resta em carne e em osso, levou a flor que lhe dei à fotografia da dela. O mais novo da família bateu palmas e deu um beijo à avó. Gostava, gostava muito que os dias lhe ensinassem atempadamente que o amor mais próspero é o que ele pode viver na presença. O outro, o que sobra, é detentor de uma unilateralidade que intensifica e endeusa o sentimento, mas que não é mais do que uma memória que procuramos e encontramos em tantos lugares vazios. A nossa memória faz parte do nosso mundo, dirão vocês certamente. É correcto, direi eu, mas o que ainda tenho para elas morre dentro do meu corpo, num amor que só a mim pertence. Não é pleno, não é certo, falta qualquer coisas a um amor sem corpo físico. Falta calor, falta um sorriso, faltam uns olhos, faltam umas mãos. 

Eu e o meu filho comemos bolo de bolacha ao jantar, duas fatias cada um. No final sorrimos um para o outro, enjoados e enfartados. Amar todos os dias cansa, pensei eu. Só quem não ama, não sabe disso.

4 comentários:

  1. A memória não só faz parte do nosso mundo, com é a garantia da nossa identidade. Ela entrelaça-se sempre com o presente, ajudando-nos a sobreviver à erosão do tempo. Através de símbolos – umas mãos, uma "madeleine" embebida no chá, um sorriso, um odor – recuperamos acontecimentos, pessoas e lugares impregnados de sensações e interpretações. É verdade que a memória se constrói no mundo das metáforas e endeusa ou mitiga acontecimentos passados, consoante as nossas necessidades presentes. Com ela, conseguimos recordar o passado e reviver o que sentimos, mas não conseguimos sentir o que recordamos, o que, em se tratando de acontecimentos dolorosos, seria um verdadeiro tormento. Talvez por isso, a memória necessite de ser incompleta e unilateral para que a vida seja sustentável. Também no caso dos acontecimentos aprazíveis, se fosse possível sentir o que recordamos, estaríamos a banalizar o que, outrora, foi único e singular. A memória completa as lacunas e os espaços que deixámos em branco devido à imperfeição da nossa condição humana – como mães, amigas, mulheres, avós, cidadãs - porque “amar todos dias cansa”.
    Mais um post que adorei ler :)
    Um beijinho

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    1. Miss Smile, eu é que adorei o seu comentário... :) As memórias são uma parte importantíssima do que somos, claro que sim, só essa extraordinária função nos permite a evolução e a aprendizagem... É por vezes a vontade de as sentir perto, que me desassossega. O cheiro delas, a voz delas, o colo delas. Acho que não as vivi o suficiente... E se calhar é essa ausência de plenitude, que hoje me falta...

      Obrigada por ter vindo. Foi bom lê-la, muito mesmo...

      Um beijinho para si.

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  2. Nunca seremos capazes de viver o suficiente as pessoas que amamos.
    Aprendemos a viver mais e melhor o amor á medida que envelhecemos. Mas é sempre tarde. Nunca atingimos a plenitude. É pena. Resta nos depois a saudade, a tristeza, a necessidade do que já nao podemos ter.
    Bonito post CF
    Beijinho

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    1. Querida Maria João, aprendemos sempre tarde, é bem verdade... É por isso que eu gostaria muito de ensinar aos pequenos da família, que há coisas que deveriam viver-se enquanto as podemos viver. Não posso, sei que não posso ensinar-lhes nada disso. Só com o tempo descobrimos certas verdades. É um dos lados bons da idade, que reside ao lado da tristeza, da saudade e da necessidade do que já não podemos ter... :) Obrigada... Um beijinho para si.

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