© Paulo Abreu e Lima

domingo, 26 de julho de 2015

o grito


O Grito, Edvard Munch

O meu berço foi pobre e com fraldinhas de pano. Não havia água canalizada, pasmem-me, parece que isso já nem existia nos meios civilizados, há quase quarenta anos atrás. Mas existia e por causa disso a minha mãe lavava as fraldas que me acolhiam os sobejos do corpo com a água do poço, num tanque ao lado e com a ajuda do sol, que as corava. Tenho saudades do tempo em que ela aquecia uma panela de água para me dar banho. E de quando me aquecia um saco que me desse conforto aos pés na casa gelada, a energia já era caríssima nessa altura, uma barbaridade. O tempo foi passando e as condições melhoraram, a família fez tanto por isso. Não sei se por sorte ou se por azar, ganhamos alguma vontade de erguer pessoas, em cada ser que veio ao mundo, e quase todos andamos a pulso. Umas vezes de lado, outras a subir, muitas delas a descer, mas vamos normalmente sempre para algum lado. O que resulta disto nem sempre é simpático. Não há na sociedade um papel facilitado para quem escolhe continuar, principalmente se esse alguém for uma mulher. Dói, muitas vezes dói ser mulher e estar à altura da sociedade, da família, dos filhos e da companhia que escolhemos para viver. Dói ser independente quando dá jeito, mas submissa quando a fantasia o quer, dói manter a casa arrumada, arranjada e polida, ao mesmo tempo que nas horas vagas cultivamos a vida cultural e as leituras, a actualidade e o teatro, porque deveremos estar à altura, mesmo quando essas horas vagas, destinadas a mil coisa, já desapareceram há tempo suficiente para nem lhe reconhecermos o cheiro ou o paladar. Isto tudo ao mesmo tempo que a cama deve de ter os lençóis esticados, lavados e perfumados, e nós devemos ter os pés hidratados e os cabelos tratados, os pelos aniquilados e as unhas limpas das peles de frango da receita saborosa, que se comeu ao almoço. Também dói um bocadinho fingir que não temos alterações hormonais. Esquecer que todos os meses nos escorrem pelas pernas quantidades de sangue que nos possibilitam a magia da maternidade, mas que nos tiram a vontade de rir e de estarmos sempre maquilhadas no ponto certo do limite do sensato, a raiar o indecente, claro, mas sempre sem lá chegar. A linha ténue, o equilíbrio, todos sabemos disso, é ao que o mundo nos obriga, é o que esperam de nós, é o que projectaram para as nossas acções, os nossos sonhos e as nossas projecções. Neste mundo trabalhamos com a conta, o peso e a medida que nos permitem não necessitar que nos sustentem, mas sempre sem exageros que nos abalem a disposição. Somos umas mulheres que sabemos cuidar de nós sem descurar os filhos, manter um lar sem sacudir o casamento, a não ser nas noites de prazer, óbvio, quando toda a barraca tem o direito de abanar e a cama de ranger. Vamos ao cabeleireiro as vezes suficientes para estarmos sempre impecáveis, mas sem irmos vezes demais, e compramos roupas que nos realcem a beleza natural (o que é isso?), sem gastar dinheiro em demasia ao orçamento familiar, nunca esquecendo que a feira é um lugar não grato, e que as lojas de marca são demasiado caras para se lá chegar. Somos uma mães atentas, contentoras, protectoras e cuidadoras, sempre equilibradas, não fumadoras nem prevaricadoras, a lavar a tempo o material da piscina e a aconchegar a roupa da cama ao deitar, a ler recados das cadernetas e as últimas da política, tudo ao mesmo tempo, de preferência enquanto fazemos o jantar. Isto na mesma medida com que fornecemos a independência, ensinamos os truques da sobrevivência, detectamos sinais de inadaptação, escolar ou social, mesmo quando os nossos olhos se fecham na penumbra da tarde, quando ainda deveríamos estar prontas para as leituras do fim do dia, a feitura da manicura, a hora da ginástica, a organização da casa e a preparação da pasta para o dia seguinte de amanhã, aquele em que já nem sabemos se conseguiremos continuar a respirar. Também é importante que mantenhamos uma vida social adequada, equilibrada, sem falhas a cambalear para qualquer dos lados, uma coisa que deve situar-se entre uma ida ao café por semana, um jantar social, um passeio de Domingo. No campo profissional, nada de mais, é ser pro-activa, competente, atenta e actualizada, coisa pouca, chego a pensar. Se pudermos manter uma actividade académica tanto melhor, se pudermos trabalhar até que a noite chegue, maravilha, se for necessário dar dias do fim de semana é que era, porque o que importa é estar à altura de uma sociedade que não sabe muito bem qual é o nosso lugar, desde que sejamos equilibradas. 

E entre jantares de negócios, vidas familiares, gestões de lares e desempenhos exemplares nos papéis diversos que nos atribuímos a nós próprias, não há lugar para sermos, e eu temo, seriamente, que o caos da existência seja este mesmo: a tremenda exigência que colocamos, mulheres incluídas, a nós próprias, em algum lado havemos de falhar. Eu, pela minha parte, mãe, mulher, profissional e competente, acho que já falho, redondamente, em todo o circuito da minha existência. Se sou eu que valho pouco, ou se é mundo que quer muito de mim, não sei, ainda não descobri ao certo, muito embora me lembre, de memória fresca, que a minha avó dizia que ser mulher é mesmo isto. Os tempos eram outros, de facto, mas ao menos estava explicita a nossa falta de liberdade. Hoje temos uma prisão disfarçada de espaços abertos, habilmente mantida por todos, numa movimentação peada por espartilhos criados à luz do que é esperado. Hoje temos uma eira onde estamos muitas vezes a fingir que brilhamos ao sol, mas na realidade secamos devagarinho. Hoje dançamos da mesma forma que as mulheres sempre dançaram, mas ao som de jazz e blues. Somos muito mais chiques e modernas, com toda a certeza.

14 comentários:

  1. Concordo, mas não esquecer que nós Mulheres somos muito mais complicadas que os homens, donde que estas exigências todas vêm muitas da vezes destas cabecinhas pensadoras do que da sociedade.

    (Se me permite a pergunta, o seu companheiro de blog ficou por áfrica?...)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não esqueço Tuxa. Estamos implicadíssimas nisso, como de resto, refiro várias vezes ao longo do texto...

      (Permito a pergunta, claro. Mas permito-me também deixá-la sem resposta. O companheiro dará notícias quando entender. O domínio público é público só no que cada um escolher dizer... :))

      Bom Domingo para si.

      Eliminar
    2. Obrigada pela resposta e pelo sorriso sincero... desses também sei fazer.
      Nada como perguntar diretamente à fonte :)

      Eliminar
    3. T. L., a "fonte" está aqui e reitera literalmente o que a CF disse: o domínio público é precisamente isso, público, e não privado. Não a conheço de lado algum para lhe dar, não querendo, qualquer tipo de explicações. Agora em Inglês: Did I make myself clear?

      (não esbanje o seu precioso tempo em me contactar via email ou outro)

      Eliminar
  2. É também por isto que dou por mim a cultivar, cada vez mais, a não exigência. E quanto menos me peço, sinto que melhor estou. Suficiente ou pouco basta, se assim o entender. Não quero alimentar heranças de um falso valor por medidas do exterior. Cansei de ser uma marioneta de mim mesma. O "povo" tem memória curta e no fim de contas somos nós connosco mesmos. Se não prejudicarmos ninguém, que nos saibamos agradar em primeiro lugar, então. E na verdade, quem mais combate a perfeição é quem mais dela sofre ou sofreu, pelo que dentro do universo feminino temos graus de pressão muito diferentes. Adorei este texto (para variar) :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Mãe Sabichona, ainda bem que já avançou no caminho... Pela minha parte sinto-me muitas vezes aquém do que eu esperava. Talvez precise de treinar com afinco, poderei ser eu que me exijo a mim mesma, coisas demais...

      Obrigada pela sua simpatia... :) Uma boa semana para si...

      Eliminar
  3. Gostei muito do seu texto, querida CF, como é costume - lúcido, sincero, completo.
    Eu, pela minha parte, sinto que já me libertei de alguns dos espartilhos que impus a mim própria. E gosto mais de mim assim (e, já agora, se me permite, também gosto muito de si).

    Uma boa semana :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Vou nesse caminho Miss Smile, espero eu...

      Você é de uma doçura enorme, deixe-me que lhe diga... Obrigada, faço minhas as suas palavras finais... :)

      Eliminar
  4. E de resto, é uma verdadeira canseira que três semanas de férias não curam - nem lá perto.
    Aguenta coração.
    Fazemos isso tudo e deixamos muitas vezes de viver a nossa própria vida.
    E enquanto isso, vamos lendo estas coisas e ficando com o nosso coração mais quente.
    Não estou só, não estás só.
    E isso é bom de saber.
    Abraço querida CF.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não estamos sós, eu sei disso, e isso ajuda muito, há uma unanimidade quase generalizada neste tipo de sentimento... O que me leva a crer que deveríamos fazer qualquer coisa mais forte para que mudasse...

      Um abraço Uva Passa. Obrigada pela companhia... :)

      Eliminar
  5. Tanta verdade, CF ... e tanta canseira. :)
    Quando a cabeça, o corpo, e por vezes a alma, sentem que estão nos limites, tento fazer um exercício racional de forma a impor máximos aquilo que devo dar de forma a repor algum equilibrio. Limito o que posso dar em termos profissionais, o que posso dar às filhas, ao marido, à casa, aos pais ... e quando chego ao 'eu', dou por mim a impor limites mínimos. Quando dou por ela rio-me e penso ... assim não vais lá Maria João! :)
    Ser mulher é muito dificil, mesmo. Mas hoje em dia ser homem não é muito mais fácil. E eu adoro ser mulher!
    O pouco que temos para o nosso 'eu', vamos aprendendo com a idade a aproveitar de uma forma muito mais sábia. Por muito pouco que seja, a sensação de o fazer é muito boa. No meio do caos há sempre felicidade, bem estar, amor ... hoje eu sei tirar proveito de 30 minutos a olhar o mar...sem o caos em que vivo 30 minutos não íam ser nada! :)

    Mais um bonito texto CF
    Beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Canseira Maria João, é verdade. O que me sustém é algo próximo do que diz... Há alturas em que o reset é possível, e em que se restabelece, quase que por magia, de períodos de sobrecarga. É essa a magia da nossa existência enquanto mulheres, digo eu. Um extrema capacidade de aguentar limites, muito além do razoável, e com pequenas recompensas... No fundo, e quando o conseguimos, não deixa de ser bonito. Mas difícil, por vezes muito difícil...

      Obrigada Maria João. Um beijinho para si. :)

      Eliminar
  6. CF
    Belíssimo texto que me fez andar para trás mais anos do que aqueles que você tem.
    Também eu lembro o cheiro do vapor de água dos nossos banhos, as roupas voltadas do avesso e passadas ao irmão seguinte, o liceu publico e a publicaUniversidade feita com bolsa. Nesse tempo as raparigas que iam para elas eram muito poucas...e mal vistas, porque a sua finalidade era o casamento e a reprodução.
    E acredite, minha querida CF, que só está a meio do caminho. Na outra metade vai aprender o que é envelhecer. Bem. Para não parecer ridícula. E como é difícil fazer isso tudo, com uma cabeça que não terá mais idade do que a sua. Só mais experiência...o que complica tudo!
    Mesmo assim, que bom ter o dobro da sua idade, andar por cá, ser apta e gozar do privilégio de conviver com os mais novos, sabendo aprender tambem com eles!
    Bjo
    É a vida dirão uns. De uns, direi eu. Porque há sempre quem se não aperceba disto e teimosa e tragicamente se fique pelos quarenta!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Helena, envelhecer bem não é para todos... Se há coisa que me faz sentido é viver cada coisa no seu tempo, sem pressas, mas também sem recuos despropositados e desprovidos de significado... A Helena soube avançar como ninguém, e eu espero seguir-lhe o exemplo, acredite... :)
      Sabe, as minhas memórias passadas são de uma humildade e simplicidade que me ajudaram de uma forma incrível. Tenho um imenso orgulho nas minhas origens, e não há recordações negativas ou tristes. Não havia, nuca houve riqueza, mas havia amor, cuidado e afecto... Ainda bem que a fiz recordar coisas boas, fico feliz por isso... :) Um beijinho e obrigada pelo seu carinho...

      Eliminar