© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

casa mortuária

Faço uma constatação prática sobre uma notícia de um jornal: uma directora de um colégio interno maltratou uma criança. Levantam-se vozes indignadas e eu assisto de perto, numa consciência muito limpa de quem conhece o território por dentro e por fora. Ao ler este episódio lembrei Maria, uma pobre criança colocada de castigo numa casa mortuária durante umas horas, numa cidade onde se reza pelo País e pelo mundo. Quis o destino e a madre que ficasse esquecida por uma noite inteirinha, ninguém a procurou, ninguém lhe sentiu a falta, ninguém lhe escutou as preces aflitas, tarde fora, noite dentro, foi preciso o canto do galo para que alguma alma de Deus lhe procurasse o caminho do regresso. Não se lembra ao certo do que fez durante todas as horas que por ela passaram. Sabe o que lhe contaram, foi encontrada enrolada em posição fetal, pela manhã, embrulhada em desperdícios humanos de diversa ordem, gelada de meter dó. Deram-lhe um banho quente, devolveram-lhe vida, entregaram-na à sua real idade de criança desobediente: nunca mais voltas a portar-te mal outra vez... Por muito que eu queira, ainda não a consegui devolver ao momento passado do esquecimento. Por muito que a encoraje a confiar na segurança da distância e no rigor do espaço terapêutico, ainda não me foi possível colocá-la na fronteira da realidade passada, o exacto lugar onde o trauma poderá serenar. Há bem pouco tempo voltou à casa onde a esqueceram, e onde a educação lhe era dada à custa dos sacrifícios que tão bem conhecia: o abandono. Por lá, madres diversas continuam a educar criancinhas, a rezar pelo mundo, a mostrar aos Homens a sua infinita bondade. 

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Angústia e tudo de mau... :( O ser humano consegue ir muito abaixo do razoável. É uma pena que seja assim, mas não deixa de ser a realidade... Felizmente acredito que também consegue ser superior. Será defesa da minha parte? Pois, não sei... :)

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  2. Por muito que se acredite, por muito que se tente, por muita esperança que se tenha, poderá alguém voltar a ser o mesmo depois disto? Penso que não. Nunca mais. Ninguém desce igual da cruz...

    Um beijinho, CF

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    1. Miss Smile, tenho para mim que todas as experiências marcantes nos deixam efeitos. Poderemos até conseguir prosseguir de forma sã, mas não será de todo um processo fácil...

      Um beijinho para si. Bom fim de semana...

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  3. A ler, a imaginar (difícil) e a arrepiar-me.

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    1. Acho que nunca conseguimos imaginar realmente... Há histórias terríveis, que só mesmo quem passa por elas consegue saber o que são... :(

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