© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Ana Clara

 
Ontem encontrei-me com os meus catorze anos. Apareceram-me lampeiros a meio do dia de trabalho, e eu que já não me lembrava deles. Apareceram-me pela mão da minha memorável colega de carteira, a Ana Clara, e eu que já não me lembrava dela.
A Ana Clara tinha dezassete anos numa turma de miúdos de catorze ou quinze. A turma era gaiata, estudiosa e competitiva. A Ana Clara era bonita e namoradeira. A turma vestia desportivo e jogava voleibol. A Ana Clara vestia sensual e jogava aos amores. A mãe estava no negócio da beleza e ela era uma excelente montra: longa madeixa loira, pele mate, perfeita de fond et de teint, malares esculpidos e olhos de tísica, com uma expressão ligeiramente bovina, que a rapariga era burrinha e com poucos entusiasmos para além da aparência e das lacerações do coração.
O seu universo estava cheio de paixões, protestos de amor eterno, crises sentimentais, rupturas encharcadas em lágrimas, ameaças de suicídio, num permanente novelo. Precisava, naturalmente, de um confidente, papel bem difícil de preencher em casting de catraios. Coube-me a mim por mor de três qualificações essenciais: altura, talento para primeiros socorros e a superior experiência de vida conferida pela leitura precoce de romances oitocentistas. Que a Ana Clara nada devia a Eugénie Grandet.
E assim o ano dos meus catorze anos correu dramático e instrutivo. Entretanto, a vida fluiu e a singularidade que nos aproximara perdeu-se em percursos oblíquos. Restava-me apenas a impressão de que casara cedo, obviamente grávida, e teria mudado para os subúrbios.
Até hoje, que me entrou pela porta. Sucessivos e avassaladores amores depois, com bastas traições de faca e alguidar, depressões e químicos a granel, a morte várias vezes próxima, uma miríade de intervenções e internamentos, esta Ana Clara é um embrulho vazio. Já não mora ninguém dentro do olhar vago da poupée de cire em que se tornou. Curiosamente, a degradação mental não foi acompanhada pelo degenerar físico. Talvez com a idade. Agora, é uma concha bonita e perfeitamente maquilhada, que, à saída, se insinua ao nosso velho porteiro gordalhufo. Ele encolhe a barriga e impa pressuroso e mesureiro, enquanto, ao lado, a companheira comprime a beiça e ajeita mentalmente a adaga na liga. Em segundos, compôs-se um triângulo de ardores. Há coisas que nunca mudam. Malheureuse Eugénie, do alto dos meus catorze anos te digo: há mais na vida do que sentir e o destino não existe.

11 comentários:

  1. Bela prosa, meu caro Paulo. Pena a piquena não ser inteligente. Quando têm dois palmitos de outra coisa, também seria excesso dotá-las de neurónios! Assim, a Ana Clara terá passado ilesa a tudo o que não fosse comoção sentimental.
    Só não fiquei a saber é porque é que a dita lhe apareceu...

    Abraço

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    1. Valha-nos isso, Helena. Mulheres extremamente bonitas e inteligentes são um perigo :-)

      Abraço

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    2. Ai! Paulo é exactamente o que acontece com os homens inteligentes e bonitos. Uma tia minha - mulher muito avançada para a época - dizia deles a seguinte frase "vai-te ganho, que me dás perda"!
      O bom, é sempre muito caro. A menos que se compre em saldo...
      Abraço

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    3. Contudo, normalmente nos saldos já não há a nossa medida :-)

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    4. Essa é que é essa! Ha quem adapte...mas já não é a mesma coisa!

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  2. Um dupla improvável essa – um novelo de paixões e um teórico do amor oitocentista:)

    Tive uma colega de liceu que era também um pouco assim. Provavelmente, todos tivemos uma colega assim. Consumia-se na incessante chama de novos amores, padecendo das febres de alma que refere. Curiosamente, tinha um padrão de beleza que eu ousaria designar de tísico. Era lânguida, melancólica e extremamente pálida. Penso que, mais do que se apaixonar pelos homens, ela apaixonava-se irremediavelmente pelo amor e pelo seu páthos. Talvez fosse esta a sua forma de preencher um vazio, a única forma que conhecia de se realizar. Ou talvez fosse uma fuga à árdua tarefa de procurar em si o que tentava encontrar desesperadamente no outro. Ou ainda, uma fuga à responsabilidade de fazer o seu próprio destino.

    Um beijinho, Paulo :)

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    1. Tudo isso em variações concomitantes: preencher vazios, procura em nós mesmos e fuga à construção do destino. Tudo isso e uma enorme predisposição para o desgosto. "Esta música é tão bonita. Porquê? Porque é triste" :)

      Beijinho, Miss :)

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  3. Ainda bem que a Ana Clara reapareceu, pois, sem ela, não teríamos tido a oportunidade de apreciar tão deliciosa leitura e preencher o nosso imaginário de tantas outras "Anas Claras" que certamente muitos de nós conhecemos em tempos idos...

    Beijinhos

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    1. Há mais Anas Claras neste mundo que possa pensar a nossa vã inteligência, Esmy.

      Beijinhos

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  4. A descrição ia óptima até que...catrapuz - esbarrei em " a expressão ligeiramente bovina". Então isso faz-se à moça ( aqui no Norte não se diz "piquena")?
    Perdi logo a vontade de conhecer a dita cuja mais de perto. Porque, Paulo, os neurónios ainda são aquilo que nos permite acreditar no futuro da espécie humana. E uma mulher sem os ditos é a tal "poupée de cire", que não interessa nem ao Menino Jesus.
    Bovinos aparte , adorei o texto. Já tinha saudades de te ler - e foi tão bom ouvir-te também!
    Cá estarei mais amiúde. Ainda bem que voltaste.

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    1. O invólucro só tem expressão depois de visto o conteúdo.
      Obrigado, Virgínia.

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