© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Abluções (6)



Hoje em dia, as palavras caligrafadas, escritas pelo próprio punho, desenhadas à mão, revelam-se quase tão íntimas quanto um beijo molhado roubado ao fim da tarde no epílogo de Verão. Letras escritas em elipse, ovaladas ou pontiagudas, entrecortadas por novas investidas ao início de cada palavra, cientes e inclinadas, acendem danças litúrgicas cadenciadas que nos levam à singular natureza do âmago, ao espécime mais exótico e único que habita em cada um de nós. Toda a grafologia é-me indiferente mas, uma vez presente, encoraja consecutivos prodígios de sedução em indeléveis erupções sobre o papel, ávido de reparo. Sinto-o amiúde, e até cruzava um aceso encosto apaladado por muitas das tuas letras em tinta de permanente satisfação.

12 comentários:

  1. É uma pena que já não seja uma realidade corrente nos dias que correm. São, sem a menor das dúvidas, um presente carregado de intimidade, que ofertamos a quem por sorte ainda as recebe. Estas palavras são únicas e por isso tão especiais...
    Beijinho

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    1. Sou do tempo das cartas de amor em papel vegetal para pesar menos. Os envelopes eram debruados com risquinhas a azul e encarnado e dizia "Par Avion" :)
      Bjos

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    2. Somos, as minhas até eram perfumadas :)

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  2. Escrever à mão, a tinta permanente de preferência, é um daqueles bons hábitos que infelizmente tem vindo a cair em desuso. Eu adoro canetas, sem dúvida um dos meus objectos de estimação. E trago sempre uma (pelo menos) comigo. Para uma emergência qualquer, uma nota, uma ideia. Tenho, também, uma agenda em papel onde registo tudo manualmente, na minha caligrafia, pequena, redonda, certinha, em muitas cores diferentes, azul, quase sempre, em variadas tonalidades, do turquesa ao bleu nuit e, às vezes, bordeaux, laranja, violeta, vert pré e tantas outras.
    Hoje, com a ditadura da era tecnológica, perdeu-se o carácter distintivo das diferentes caligrafias e um bocadinho da personalidade que se revela em cada uma delas. Não se trata de insistir em ser "antiquado". É antes persistir em prazeres que não devem perder-se. É que escrever à mão é sempre muito mais íntimo e mais profundo. Há a sensualidade da caneta apertada entre os dedos e da mão deslizando devagar, encostada ao papel, da caneta quase como uma extensão do corpo, numa relação muito mais física com a escrita. Uma delícia!...

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    1. Escrever à mão tornou-se esquisito. Principalmente numa geração em que num ápice deixou de o fazer para se vergar ao computador com formatos de letra estandardizados. Deixou-se uma única e intransmissível caligrafia por uma oferta de trinta ou mais do Word. Deixou-se toda a mão por dois punhados dos dedos. É estranho, mas aconteceu mesmo connosco...

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    2. Comigo não. Continuo a escrever muito à mão, sobretudo as coisas mais especiais. Adoro "des billets doux" que continuo e entregar e a gostar de receber. Mas eu sou muito antiga e em certas coisas também "à antiga"... :)

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  3. No meu tempo de criança, o mundo dividia-se entre as pessoas que tinham uma caligrafia bonita e as que não tinham. Atualmente, muita coisa mudou, mas a caligrafia continua a ter muito que se lhe diga. Numa época em que quase ninguém escreve à mão, as palavras assim escritas podem equiparar-se a palavras nuas, a rastos de personalidade que se revelam numa folha de papel. Nos tempos que correm, dar a conhecer a própria caligrafia – fi-lo há dias no meu blogue e pensei exatamente nisso – pode ser tão revelador como a própria voz. O ângulo de inclinação, a disposição, a espessura das letras que se escrevem podem corresponder ao timbre e ao tom que colocamos na voz. E, tal como a voz, as palavras caligrafadas prestam-se a interpretações – uma certa cadência, uma irregularidade aqui, uma variação de pressão acolá, um tremor de mão numa determinada palavra, podem desvendar mundos e acender desejos. Palavras escritas com a ternura gravada no papel (esta continua a ser a tinta permanente de melhor qualidade) podem ser tão íntimas como um beijo molhado roubado num fim de tarde de verão. Ou de outono, inverno, primavera.

    Um beijinho, Paulo :)

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    1. Sem dúvida, Miss Smile. E sabe que mais? Hoje em dia há muitos casais que não conhecem ou identificam a caligrafia um do outro: Acho triste e estranho. É mais um pouco de intimidade que se perde pela espuma dos tempos.

      Beijinho, Miss :)

      ps: Tinha reparado na foto do seu post, mas não tinha a certeza :)

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  4. Já praticamente não troco correspondência manuscrita e penitencio-me por isso. Lendo este post fiquei de imediato com uma vontade enorme de escrever a alguém, de recuperar, perdido numa qualquer gaveta cá de casa, um bom velho papel de carta ou de correr para a caixa das recordações de papel e vasculhar o maço de antiga correspondência que mantenho atado com um laço de fita. :)

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    1. Faça isso, Luísa. Vai redescobrir uma nova pessoa em si vendo a sua caligrafia. Depois, ali não há possibilidade de engano. Ou a carta fica "limpa", ou rasurada com a ponta da caneta mais forte :)

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  5. Adoro os bilhetes, os poemas transcritos para papel, as palavras grafadas a tinta azul ou preta.

    Bom fim-de-semana, Paulo :)

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