© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 12 de abril de 2016

Negra como um tição

Era negra como um tição lustroso, grande, enorme pelos genes, esperta como um raio, que não lhe passava nada despercebido. Impunha-se pela presença briosa e pela estultícia com que dominava as brincadeiras palermas. Mas quando se erguia, atingia o meu tamanho, abraçava-me inclinando a sua cabeça no meu pescoço já lambuzado e, aí, conseguia sentir o pulsar do seu coração muito maior do que o meu. A danada comovia-me e fazia-me esquecer todos os seus desconchavos muito próprios duma relação difícil e intensa. Há animais que nasceram pessoas e pessoas que nasceram animais; a Alpha era a cadela mais humana que conheci. No olhar, no lacrimejar, no som da agonia da separação, na alegria do bom dia e da companhia.
 
Um dia acordou e não se levantou. Peguei num corpo flácido de noventa quilos e, presciente do pior, levei-a ao veterinário. O diagnóstico veio célere e frio: leishmaniose em último grau. Dado o estado avançado, teria de ser abatida. Ficou inerte numa jaula do veterinário até ser administrada a injecção letal e subsequente tramitação legal. Não quis assistir a nada, chorei baixinho como ela o fazia quando se despedia à noite, uivei e lati por dentro, esconjurei o mundo e jurei nunca mais receber aquele amor incondicional. Passaram seis meses e o processo de luto continuava. Indispunha-me ver cães, gatos, papagaios e periquitos mai-los seus donos lampeiros. Saberão o que os espera? Não. Só lhes interessa o prazer imediato. Ainda estava na minha fase de revolta e desconjura. Palermas, sois todos uns imbecis.
 
Passado um ano, já conciliado, recebi um telefonema do veterinário pedindo que eu passasse por lá. Hesitei, querer-me-ia impingir algum cãozinho com LOP e Afixo de boas famílias…? 'Tá quieto! Mas um dia acabei por lá passar. Vejo-o sereno e bonacheirão, teria degustado um almoço bem regado numa tarde de Primavera.
 
- Meu amigo, tenho aqui uma surpresa especial para si que não vai recusar.
- Meu caro, mais animais não. Está completamente fora de questão.
- Amélia, traga aqui a cadelinha para o senhor doutor. Ele não vai recusar.
 
Saio para o jardim irritado, olhando para baixo, pensando numa boa desculpa: deixei de gostar de animais, não, estou a viver num estúdio na baixa da cidade, não, tenho um gato arraçado de gineto selvagem, é isso. Ao longe, vejo um cavalo negro como um tição em passo de trote na minha direcção; a menos de vinte metros começa a cavalgar desenfreado e, sem perder o balanço, atira-se para o meu colo como uma criança de noventa quilos. Volto a sentir o seu coração muito maior do que o meu e a cabeça inclinada no meu pescoço lambuzado. A Alpha viveu mais cinco anos comigo, morreu velhinha com artroses e demais maleitas próprias da idade, foi a pessoa que nasceu animal que mais me amou.
 
Alpha  (1992 - 12.04.2002)
 

10 comentários:

  1. Compreendo a dor, o luto e a redenção.
    Quando amamos os animais, é um amor sem limites, sem vergões...
    Ainda bem que pudeste ter mais alguns anos para disfrutar da sua companhia. O teu texto expressa bem o entusiasmo e a perda.

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    1. A afeição aos bichos é muito complicada precisamente pela média esperada de vida muito inferior à nossa. Uma pena.

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  2. Que linda e comovente história de amor incondicional. Infelizmente, vivi algo semelhante e cada vez mais me convenço, que alguns animais seguram dentro de si muita mais "humanidade", que muitos homens. Confesso que me conseguiste fazer raiar os olhos... Beijinho

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    1. Precisamente, são incondicionais no que dão. E se isso não é amor, não sei o que mais seja. Obrigado, Esmy, beijinho.

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  3. Linda a Alpha, guarda-a contigo. Os mortos, e ao contrário do que se julga, nem sempre nos acompanham. Fazem-no quando faz sentido, quando é preciso, e sendo assim deveremos acarinhá-los, senti-los, deixar que nos povoem o corpo, se for caso disso. Fingir que não é nada é um puro erro, para nós e para eles. Nós, ficamos menores e mais pobres, eles, ficam perdidos no mundo, sem lugar na memória que tanto merecem...

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    1. Costumo chamar alma a essa memória que nos acompanha. Nunca matei almas dos entes queridos que já se foram fisicamente. Muitas fazem parte de mim; outras também do mundo. Falar dos nossos mortos é darmo-nos a conhecer. Parte de mim são os meus mortos, e também a minha alma...

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  4. Nem quero pensar no dia que vou sentir algo semelhante. :(
    (Alem de todas as outras caracteristicas, a Alpha era linda!)

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    1. Os Golden Retriever são mais pequenos, têm uma esperança de vida maior...

      (A Alpha, além de "maluca", era uma dominadora)

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  5. Infelizmente existe a morte. Nunca nos vamos habituar.
    Os animais são pessoas como as pessoas são animais. É uma frase que não é minha, mas poderia ser. Uma grande abraço.

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    1. É isso tudo, Uva. A questão aqui é a "ressuscitação" feita pelo veterinário ao longo de um ano sem o meu conhecimento...
      Outro abraço

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