© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

As deformações de Auguste Rodin

Nunca outrora a Estética foi tão valorizada como na Grécia Antiga, emergindo mesmo como um ramo autónomo da Filosofia:
"… a beleza não está na simetria dos elementos, mas na adequada proporção entre as partes, como por exemplo dos dedos uns para com os outros, estes para com a mão, esta para com o punho, este para com o antebraço, este para com o braço, e de tudo para com tudo, como está escrito no Cânone de Policleto. Tendo-nos ensinado nesta obra todas as proporções do corpo, Policleto corroborou seu tratado com uma estátua, feita de acordo com os princípios de seu tratado, e ele chamou a estátua, assim como o tratado, de Cânone" (in De Placitis Hippocratis et Platonis, Galeno)

No Renascimento, com Michelangelo e Bernini, ao cânone das proporções, evoluiu-se para o contrapposto, isto é, abandonou-se a pose majestosa e estática das obras esculpidas representando o corpo humano, impregnando-as de movimento e de naturalidade. David é o expoente máximo desta mudança, em que à harmonia do corpo junta-se a beleza da alma.

Passados mais de trezentos anos, surge (na opinião de muitos críticos) o maior escultor de todos os tempos, Auguste Rodin. À perfeição da representação do corpo (Rodin foi um fervoroso estudioso da Anatomia Humana) e à cadência da vivacidade e do movimento, imprimiu sentimentos e emoções, fazendo com que as suas obras interagissem com o observador, alterando sistematicamente a sua observação, incitando-o mesmo à reacção. Muitas vezes, deixava as suas obras inacabadas (non finito), não por mero capricho de marca própria, mas com o intuito de convidar o observador a participar na sua criação. Obviamente, rompeu com as regras da Academia da época, foi marginalizado e não foi aceite pelo seus pares. Mas continuou em condições especialmente difíceis.

Em 1884, o Presidente da Câmara de Calais escreveu a Rodin "Nossos burgueses sempre se ergueram imperiosos e insensíveis às injúrias do tempo e aos comentários idiotas. Há-de vir o dia que serão compreendidos". Assim, o Município convidou Rodin para esculpir um monumento que "deve comemorar o episódio da Guerra dos 100 Anos no qual, a cidade, cercada pelo rei de Inglaterra, foi poupada graças ao sacrifício de seis eminências que se ofereceram como reféns de corda ao pescoço com a chave da cidade nas mãos", como descreve o cronista Froissart. Rodin elaborou um monumento com seis pessoas, todas ao mesmo nível térreo e em tamanho natural, em que cada uma delas expressa um sentimento e uma atitude diferentes, com individualidades físicas e psicológicas diversas, através das suas expressões faciais, corporais e vestes ante a proximidade breve da morte: o cansaço do mais velho, a solidez e determinação do portador da chave da cidade, o desespero e a tormenta do mais frágil, o dramatismo do mais ansioso, a aceitação estupefacta do mais novo e a coragem do mais destemido. Perante tanta diversidade, emerge uma imensa expressão de solidariedade e de sacrifício colectivo. Em toda esta multiplicidade surge uma incontestável harmonia à qual devemos chamar Arte.
 
Os seis "Burgueses de Calais"

 
Quatro anos antes, em 1880, Rodin tinha sido chamado a construir "As portas do Inferno" para o futuro Museu de Artes Decorativas. Inspirado pela primeira parte da Divina Comédia de Dante, O Inferno, esculpiu nelas quase duzentas figuras até à sua morte. Deste monumento colossal, com mais de seis metros de altura, surgiram as suas obras mais emblemáticas, através de réplicas maiores retiradas do portão. Dele saiu "O Pensador, "As três sombras", "Ugolino", "O filho pródigo", "Fugit Amor", "A Danaide" e a célebre "O Beijo", entre muitas outras.
 
O enorme "Portão do Inferno" (no cimo "As três sombras" e logo abaixo "O Pensador")

"O Pensador" (antes, "O Poeta")

"As três sombras" (antes de entrarem no Inferno)

A morte de "Ugolino" com os seus filhos e netos famintos agarrados ao seu corpo
 

Cada uma delas tem uma narrativa muito própria e rica. Vejamos “O Pensador”. Enquanto personagem que compõe o Portão do Inferno, não passa do próprio Dante observando de cima o seu Inferno. Mas fora deste, ampliado, simboliza a força do pensamento poético e filosófico sobre a natureza e condição humana. Reparem bem no corpo representado, parece em harmonia total, em perfeito equilíbrio, e contudo… tentem imitar a posição daquele corpo sentado: pulso esquerdo sobre o joelho esquerdo e cotovelo do braço direito sobre a coxa esquerda… experimentem sentir aquela posição! Quanto tempo permanecem confortáveis nela? Voltem a olhar para a escultura abaixo:
 
Não se esqueçam: pulso esquerdo sobre joelho esquerdo e cotovelo direito sobre coxa esquerda...
 
 Tudo tão sensato e equilibrado… Este é apenas um exemplo, mas a razão pela qual o corpo parece estar completamente descansado é o alongamento dos braços e do tronco, aliás, as mãos das esculturas são todas maiores que o "normal" e, contudo, imperceptíveis.
 

Escultura de Balzac com o seu hábito de monge usado enquanto escrevia: foi um escândalo à época...


Como disse, todas as obras têm uma história e um propósito muito próprios e ricos. Rodin é um expressionista e um impressionista, um romântico e um realista, um classicista e um pós-modernista. Rodin é um Artista Maior, o maior escultor de toda a História.

O Jardim do Museu Rodin
 
Podia acabar aqui este já extenso post: uma pequena mostra do génio de Rodin e algumas explicações sobre a proveniência de algumas das suas obras. Mas seria justo? Não. E porquê? Porque omitiria o maior "mistério em plena luz do dia": Camille Claudel.
 
Camille, depois de estudar na Escola de Belas Artes de Paris, foi admitida como aprendiz-estagiária de Rodin por volta de 1884. Extremamente talentosa, mesmo genial, colaborou activamente em todos os trabalhos atrás mencionados conjuntamente com ele. Muita da genialidade destes deveu-se a Camille, de tal forma que a fusão no acto criativo era completa. Mal se distinguia a mão de um da do outro, como o Amor de um pelo outro… "Danaide" é ela e o famoso “Beijo” (que nas “Portas do Inferno” representava o amor proibido de Paolo e Francesca – personagens de Dante) são eles os dois. Rodin não era casado, mas namorava Rose e nunca prescindiu dessa relação em nome de um passado sofrido no começo da carreira. A relação com Camille foi profundamente intensa durante dezasseis anos (um aborto e muito sofrimento pelo meio). Intensa, doentia e cruel: diz-se que Rodin ter-lhe-á dito que "ela emanava dele e que nada era verdadeiramente dela". Surge a inevitável ruptura. Camille, inacreditavelmente criativa e talentosa, constituía um escândalo para a sociedade e uma ameaça em cascata para o talento de Rodin. Consumou o desenlace primeiro com “La Valse” e depois, definitivamente, com "A Idade Madura". Entretanto agudizaram-se os episódios neurótico-obsessivos e a depressão, tendo sido mais tarde internada compulsivamente num manicómio, isolado do mundo. Morre, muito doente, pouco tempo depois da morte do seu pai, o seu maior protector.
 
Agora acabo: cada vez que virem uma inacreditável obra de Rodin, nunca se esqueçam que sobre ela passou a fraqueza de um homem e a força e a paixão das mãos de uma Mulher. Camille, "um mistério em plena luz do dia"*.
 
(fotografia retirada do Google)
 
* Expressão do irmão, o poeta e embaixador Paul Claudel

13 comentários:

  1. Quem como eu segue atenta e interessadamente o seu blogue, encontra na inconstância da sua escrita um dos seus grandes encantos.
    Como neste exemplo: depois de várias incursões, todas magníficas e mais ou menos seguidas sobre Paris, o silêncio.
    Mas valeu a pena esperar: este post é avassalador! Muito elucidativo, mas com aquele suplemento de alma que é de certo modo a sua imagem de marca, aliando na perfeição bom gosto e sobriedade, inteligência e emoção. E, depois há ainda e como sempre as fotografias, todas deslumbrantes a devolverem-nos essa maravilhosa cidade em todo o seu esplendor e revelando-a devagar, em pequenos detalhes, com uma sensibilidade que a torna ainda mais bonita.
    Diante de tudo isto, Paulo, só há duas coisas a fazer, mesmo correndo o risco da repetição: dar-lhe os parabéns agradecer-lhe outra vez. E outra. E outra...

    Muito muito bom! E que saudades desse lugar fantástico - o museu Rodin - que me impressionou tanto da primeira vez que o visitei, e que hoje visito de novo, com outros olhos e de outra maneira... ;)

    Beijinho :)

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    1. Ó Isabel, muito obrigado, é sempre muito bom quando agradamos a alguém e, contudo, havia tanto mais a dizer sobre Rodin (e Camille)...

      Beijinho :)

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  2. Não seria amor, Paulo, certamente obsessão, admiração obstinada, atracção, fraqueza, como também dizes. É fácil para uma personalidade obsessiva ( que não sei se tinha, só suponho) elevar ao expoente máximo as suas fixações, como se de grandes paixões se tratassem. E quando se é genial, não deve ser difícil esculpi-las... Mas a questão é que quando o são, verdadeiros amores e paixões, não se afrontam pelo desconforto do sucesso de quem se ama. Pelo contrário... Nada disto lhe tira mérito e genialidade na escultura, claro. Mas eventualmente traçou um caminho, quiçá dois: o do sucesso dele e o da decadência dela.

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    1. A confrontação final entre a genialidade dos dois terá sido um pretexto, uma gota de água num copo já cheio de impossibilidades e rancores, de sentimentos avassaladores entre paixão e loucura em forma de ódio. A relação foi obsessiva, sim, e a Camille acabou por descompensar e enlouquecer. Trágico.

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  3. Paulo
    Excelente lição de História e de Arte. Quanto à Camille, uma personagem soberba, amanhã virei perorar...

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    1. Helena, a Camille é uma persona riquíssima. Ainda este ano esteve em exibição mais um filme sobre a sua reclusão compulsiva a partir de 1915 ("Camille Claudel 1915"). E, porém, qual é o homem que não gosta de sentir esta intensidade ou viagem pelas raias do abismo...?

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  4. Gostei de ler.
    Excelente exposição...

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  5. http://youtu.be/Z36tWwvWLHI

    Camille Claudel& Rodin
    George Sand & Chopin
    A arte é uma valsa!

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    1. Música belíssima do filme de Nuytten (1988) com uma soberba interpretação de Isabelle Adjani e do então ainda francês Gérard Depardieu... Infelizmente, a Grooveshark não disponibiliza a música.

      A Arte muitas vezes também é um tango!

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  6. Não podia deixar de o felicitar pela lição que aqui expõe e pelas observações pertinentes que ilustra e esclarece.
    Será que se importa se eu roubar umas imagens para os meus power points?
    É que, as mesmas, chegam a fazer inveja a muitos autores que conheço.
    Teresa Peralta

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    1. Teresa, antes de mais, muito obrigado - não pretende ser uma "lição", mas uma pequena partilha.

      Quanto às fotos, não me importo nada, desde que mencione a fonte, mas sobre isso escrevo mais tarde. Esteja à vontade.

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    2. Muito obrigada pela sua disponibilidade e, no caso de vir a utilizar as suas imagens, agora que já o permitiu, prometo não praticar nenhum plágio.
      Finalizo este segundo comentário, com reiteradas felicitações, desta vez, pelo blog que assina e que gostei de conhecer.

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