© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 19 de novembro de 2013

carne fraca

Nunca percebi muito bem como separar a carne do espírito, não me ensinaram, não sei como se faz, nunca houve ninguém com um receituário concreto que me esboçasse um caminho. Em pouco tempo perdi o interesse, habituei-me à complementaridade, abafei a religião que propaga a infinitude de um e a morte do outro, esqueci a vida eterna e a lucidez do intelecto, construí o que sei. Mas o que eu sei, não é muito. Sei que o meu espírito obedece ao meu corpo vezes esquecidas, e que mesmo num resquício de ideia estruturada, é na carne que eu vivo todos os dias e todas as noites, todas as horas e todos os momentos, todos os prazeres e todas as dores. 

Talvez por isso tenha desistido de lutar contra ela, deixei-me disso. Oiço-a da ponta dos meus pés à ponta da minha cabeça, perco-me em cada poro visível e invisível, destaco os contornos e os trajectos, concretizo o que me possibilita viver, conheço-me no infinito. Desde essa altura nem me atrevo a esquecê-la. Não me permito ao desconcerto efectivo, dou-lhe os ouvidos e a boca, as mãos e o cheiro, olho-a de frente e de perto, sem medos ridículos. Até porque ninguém me conhece melhor do que ela: sabe exactamente onde começo e onde acabo, o que quero e o que não gosto, o que espero e onde me dirijo, o que me mata e o que me acorda. 

Irrita-me particularmente que a chamem de fraca, vejam, dizem-no dela porque se impõe. E por favor, analisem bem quem tem a razão. Eu, por exemplo, não sei o sítio exacto onde reside o meu amor. Se entre as ligações sinápticas e invisíveis que me percorrem o cérebro, ou se na pele externa que de fora o quer. Jamais o conceptualizaria apenas morador de rua, isso não seria amor. Mas faltar-me-ia à brava o concreto, se o reservasse e limitasse à inocência do intelecto. 

Há por aí quem me diga que o apuramento da razão não interessa, e sendo assim tem-na toda. E o certo é que sabe disso, local exacto onde a piada se esvai e o meu corpo estremece. Ou não fora a carne fraca, pois. E eu submissa a ela, claro. 

4 comentários:

  1. Que texto bonito, CF!

    (O espírito sai do corpo cada vez que sonhamos. Ou quando morremos)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ora Paulo, obrigada :)

      ( Quando morremos, não sei. Quando sonhamos, tenta sair, mas não sai, ensaia só. O que não quer dizer que isso não seja vida...)

      Eliminar
  2. Bom CF, comigo passa-se exactamente o contrário. Há muito que a razão comanda a minha carne e esta lhe obedece sem grande resistência. Também é verdade que elas forma treinadas para a sintonia e é com base nela que funcionam.
    Quanto às dores e às alegrias, no meu caso, não é a carne que as vivencia. É a minha alma e o meu coração. O corpo, que sempre tratei bem, não é mais do que o invólucro daquilo que sou. Tenho este como podia ter outro. O que lá está dentro é que me distingue, me define, enfim, me diz quem sou.
    Mas este é o meu sentir e longe de mim considerar-me exemplo para quem quer que seja!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Exemplo, constituirá sim, por variadíssimas coisas, como por exemplo o processo de aprendizagem que a vida lhe deu. Eu sou muito pela harmonia entre ambas, de facto. É claro que a razão nos distingue, é por ela que somos pessoas. Mas o corpo não deixa de ser o que nos sustém, logo, uma peça fundamental do processo. Não tenho dúvida que se o meu corpo fosse outro, o meu intelecto seria totalmente diferente. Por inúmeras questões...

      Beijinho para si.

      Eliminar