© Paulo Abreu e Lima

sábado, 28 de dezembro de 2013

bens de primeira necessidade

Especial por existência é o ar que respiramos todos os dias, entre outras importâncias que permitem vida, como a água e o globo terrestre. O resto é sempre uma criação, e até a sorte ordena o nosso lugar no centro ou na periferia do mundo ( cada um pode pensar qual é o seu, mas não aconselho vivamente). Quando saí outro dia percebi que o cão preto que me rondava a porta era especial, pode até ter a ver com o Natal. Um pobre animal de quatro patas, focinho enterrado na calçada, olhos tristes, pêlo curto e fugidiço. Ele não era importante, era um cão comum, fui eu que fiz com que fosse único para a minha pessoa, naquele exacto momento, muito mais dependente de mim do que dele: ele estava quieto, era eu que passava. Isto acontece desde que nascemos, iguais uns aos outros, feitos de sangue, pele, órgãos e ossos, vindos de um ventre inchado e distendido, cansado de nove meses de carga (não há nenhuma maior do que um filho, com tudo o que isso tem de  bom e de mau). A utopia da igualdade, e paradoxalmente, torna-se impossível pelos outros e não por nós. São eles que com os olhos nos dão e nos tiram mundo, e são eles que podem fazer com que passemos de simples mortais a seres especiais. Mas é a utopia da superioridade pura, enclausurada nas personalidades notáveis, construídas maioritariamente pelas mesmas, que realmente me enfada. Desponta de uma grandeza delas para elas, de uma dança ao espelho, de uma auto sedução: olham-se com admiração e tempo, passam o bâton devagarinho, escovam o cabelo a preceito e compõem o colar, tudo com a máxima atenção ao detalhe do fecho, da altura e da pérola perfeita. Dançam demoradamente, despem-se mas vestem-se depressa, que a crueza da nudez importuna a excelência, e voltam a recolocar os acessórios encaixados no devido lugar do corpo. Usualmente quase todos os dias à mesma hora dançam outra vez. E é exactamente esta repetição incessante no velho espelho apagado, que me causa um tédio de morte.

( Por vezes dá-me uma incontrolável vontade de virar a senhorinha. De vazar os pós soltos, jogar os ganchos aos bichos, depenar os visons, quebrar os saltos e as jarras pé alto. É que do lado de cá dos espelho estão ouvidos enfartados de fetiches estudados e claro, postiços. E há tanta música natalícia por estes dias, que a libertação prolongada da ignorância pode ser um bem de primeira necessidade.)
  

4 comentários:

  1. Podiam, ao menos, como a Alice, atravessar o espelho. Mas não podem, porque levam demasiado consigo...
    Nesta altura do ano, também eu, sei lá bem porquê, elas/eles se multiplicam e se encontram ao virar da esquina!
    Para si e para o Paulo saúde, satisfação pessoal e sabedoria para enfrentar os desafios que por aí venham.

    Um abraço da Helena

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    1. Não podem, pois, a carga é pesadíssima ( embora de carácter fátuo...).

      Votos de tudo isso para si também, Helena. Um conjunto de grandezas reunidas, que valem tanto... Um grande abraço para si. E tudo, tudo de bom.

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  2. Li o que escrevi e não se entende. Segue a correcção. Sinais da juventude...
    "Podiam, ao menos, como a Alice, atravessar o espelho. Mas não podem, porque levam demasiado peso consigo...
    Nesta altura do ano, também eu, sei lá bem porquê, vejo como elas/eles se multiplicam e se encontram ao virar da esquina!
    Para si e para o Paulo saúde, satisfação pessoal e sabedoria para enfrentar os desafios que por aí venham."
    Abraço

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    1. Não se preocupe, Helena. O conjunto estava perfeitamente perceptível...
      Um beijinho

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