Houve o dia em que encontramos uma igreja abandonada e quase nos apetecia saltar o arame farpado que a guarda dos olhares curiosos. Os meus entram numa classe apuradíssima dentro do género, são capazes de cometer delitos pelo prazer de olharem, mais ou menos como os meus ouvidos, que se propõem a atravessar distâncias pelo de escutarem. Seguimos caminho que a sensatez proibiu-me de arriscar, não fora aparecer alguma guarda encarregada de zelar pelos supremos interesses do proprietário. Ficou-me atravessada, a bendita. Isolada num campo quase vazio, batida por sol, arrefecida por uns dez graus centígrados ensolarados, o melhor dos dias de Inverno ( Outono, claro). O montado ( relembrou-me ele, que fraca memória) guardava uns ninhos de cegonha altíssimos, mas as aves nem vê-las, devem estar longe. Os sobreiros recordam-me sempre um coração que eu desenhara num do meu avô, o gigante gigantão que me livrava o quarto do sol e o deixava gelado. Nessa altura eu desenhava por sugestão, achava bonito e delicado, coisas de menina que não sabia de nada. Não arrisquei pedir-lhe que parássemos, já não sou hábil nem persistente, para tal proeza é preciso tempo. O dia estava frio, mas juro que quando voltamos o meu corpo procurava a igreja outra vez, desejo totalmente condizente com a minha paixão por monumentos religiosos. Gosto de tudo no silêncio dos locais sagrados, desde as portadas aos santos, se ou houver, passando pelo cheiro da devoção e da sacristia, dando a volta pelos altares e pela fé, se tiverem gente. Se não tiverem, tanto melhor, fica a tua, a minha, a nossa. No aqui, no agora, no depois e no para sempre. Não saímos porque não entramos, mas se o tivéssemos feito viríamos na mesma tão perto. Nem queria saber o que estava lá fora, quereria apenas sentir o que está cá dentro. Um dia levo-te lá mesmo a sério, prometo, e se me tentares chamar à seriedade, faço orelhas moucas, há momentos clandestinos que merecem ser. Na ausência deles ganha a razão, sensata, prudente, fria, sozinha. Uma ilustre vitória desapaixonada.
© Paulo Abreu e Lima
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
clandestinidades
Houve o dia em que encontramos uma igreja abandonada e quase nos apetecia saltar o arame farpado que a guarda dos olhares curiosos. Os meus entram numa classe apuradíssima dentro do género, são capazes de cometer delitos pelo prazer de olharem, mais ou menos como os meus ouvidos, que se propõem a atravessar distâncias pelo de escutarem. Seguimos caminho que a sensatez proibiu-me de arriscar, não fora aparecer alguma guarda encarregada de zelar pelos supremos interesses do proprietário. Ficou-me atravessada, a bendita. Isolada num campo quase vazio, batida por sol, arrefecida por uns dez graus centígrados ensolarados, o melhor dos dias de Inverno ( Outono, claro). O montado ( relembrou-me ele, que fraca memória) guardava uns ninhos de cegonha altíssimos, mas as aves nem vê-las, devem estar longe. Os sobreiros recordam-me sempre um coração que eu desenhara num do meu avô, o gigante gigantão que me livrava o quarto do sol e o deixava gelado. Nessa altura eu desenhava por sugestão, achava bonito e delicado, coisas de menina que não sabia de nada. Não arrisquei pedir-lhe que parássemos, já não sou hábil nem persistente, para tal proeza é preciso tempo. O dia estava frio, mas juro que quando voltamos o meu corpo procurava a igreja outra vez, desejo totalmente condizente com a minha paixão por monumentos religiosos. Gosto de tudo no silêncio dos locais sagrados, desde as portadas aos santos, se ou houver, passando pelo cheiro da devoção e da sacristia, dando a volta pelos altares e pela fé, se tiverem gente. Se não tiverem, tanto melhor, fica a tua, a minha, a nossa. No aqui, no agora, no depois e no para sempre. Não saímos porque não entramos, mas se o tivéssemos feito viríamos na mesma tão perto. Nem queria saber o que estava lá fora, quereria apenas sentir o que está cá dentro. Um dia levo-te lá mesmo a sério, prometo, e se me tentares chamar à seriedade, faço orelhas moucas, há momentos clandestinos que merecem ser. Na ausência deles ganha a razão, sensata, prudente, fria, sozinha. Uma ilustre vitória desapaixonada.
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Há uns anos atras, também eu senti, algo idêntico, em relação a essa mesma igreja... Linda!! E, a minha curiosidade também foi provocada pela paixão que nutro por esses edifícios de silencio, que me conseguem transpor para algo mais introspectivo, etéreo, transcendental; sempre aliada, ao interesse artístico, inerente a uma deformação técnico-profissional. Tenho que lá voltar. Um dia...
ResponderEliminar(Esta é a igreja/ermida de Nossa Senhora das Vitórias, situada na Lagoa das Furnas; Será que estou errada?) :))
Teresa, tudo o que me transcende, me apaixona de certa forma. Talvez por isso a religião no geral, bem como tudo o que a representa, me dizem tanto. Para além do silêncio que neles encontro, claro, como tão bem refere...
Eliminar( Não está errada, não senhora!! :))
São insondáveis os caminhos clandestinos da memória...
ResponderEliminarTodo o nosso interior é de certa forma insondável. Deixá-lo transparecer, ao mais clandestino, é um desafio que nem sempre conseguimos... Mas com ganhos também eles insondáveis, se o permitirmos...
EliminarUm beijinho para si.
Tal como a Teresa, tal como a CF, também eu gosto do silêncio e da transcendência de locais assim, na quieta magia da sua relação com o tempo. Gosto de tudo aqui... ;)
ResponderEliminarUm beijinho
Isabel os locais isolados têm sempre alguma magia. Se a eles juntarmos um monumento religioso e tudo o que ele encerra, temos cenários assim...
EliminarUm beijinho para si :)
Um texto às claras sobre caminhos clandestinos. A arte de bem escrever e despertar memórias, fugas, imagens e coisas doces.
ResponderEliminarCaro Luís, um bem haja a todas as clandestinidades que trazemos à luz do dia. Obrigada e cumprimentos.
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