© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

da mercadoria barata

Lena sabe tudo. Do alto do seu metro e cinquenta mal medido, dilui-se em soluções alicerçadas na sua certeza medíocre, enquanto o redor se redime, impressionado, com tão notável inteligência. Os desenlaces nascem-lhe do corpo sem critério ou objecção, espalham-se pelos dedos que agarram tudo, pelas palavras que espargem  saber, pelos olhos que emitem umas bolinhas recheadas de uma razão acordadíssima a um mundo diminuto e precisado de ordem, que só o número pode dar. Primeiro obstáculo, não são os números que governam o mundo. O mundo governa-se quando muito em pequeninas equações quase aritméticas, que se expandem e se transformam em outras muito maiores, mas que perdem o rigor numérico num segundo, é haver gente. E eu cá, não conheço outro, o dos bichos está-me de certa forma vedado. Ouvi-a em silêncio, apurei os ouvidos, sacudi os cabelos, coloquei os óculos, não fosse escapar-me alguma meditação corpórea merecedora da minha atenção, e parei muito quieta, verbalizando umas míseras interjeições encorajadoras, quando era caso disso. A pessoa animou-se, e eu continuei passiva, bem vistas as coisas só sou boa a incentivar o interlocutor, ossos do ofício. "Ensinou-me" como se gerem mulheres e homens, como se controla uma casa desgovernada, como se fiscalizam os números que permitem a existência regulamentada, como se motiva uma equipa de trabalho, onde se arranjam pessoas que valem a pena. Segundo obstáculo, acabei por perguntar-lhe o que é isso de pessoas que valem a pena. Não soube bem dizer-me, espantem-se, iniciou apenas um processo de seriação de competências consideradas importantes, todas devidamente encaixadas no rigor matemático que a rege à exaustão da existência, como se o tempo pudesse ser vivido ao segundo, apenas e só, sem a maleabilidade interna da construção do pensamento. A certa altura tirei os óculos. Olhei-a de perto e levantei-me, precisei de ir beber um copo com água, estava angustiadíssima. Perguntei-lhe quantas coisas ela não sabia, dado que me parecia saber tanto. Fiquei pasmada de não obter uma resposta concisa, algures entre um bilião e o outro, mas conseguiu apenas dizer-me que não sabe algumas coisas. Não gostei da ausência de rigor, pois claro que não, apeteceu-me até exercer a temida função de professora do antigamente e utilizar a janela e as orelhas de burro, sentá-la virada para a rua, à vista de todos, chamar uma notável assistência e bater palminhas. Em vez disso, disse-lhe apenas que assim ficava mais satisfeita, pois na arte de uma certa sabedoria, ganhava eu um a zero: ela não consegue quantificar a burrice que a ataca, eu, sem a numerar, topei-a toda desde que me entrou à porta do escritório para dentro. 

(Ela também não sabe, mas quem é mesmo bom não se vende ao desbarato.) 

2 comentários:

  1. Muito Bom!!! Como sempre :) :)
    Como eu gostava de ter a calma necessária para tecer palavras semelhantes sempre que se me atravessa ao caminho gente dessa! Mas não tenho. Viram-se-me as entranhas de tal maneira que toda eu respiro raiva, ódio, asco e sei lá eu mais o quê!...
    Cada vez me é mais difícil lidar com a arrogância dos verdadeiramente ignorantes.
    Beijos

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    1. :) Não é fácil, não. A vontade primária é realmente explodir. É tentar pensar a ignorância na essência, Antígona. Se conseguires, vais ver que ganhas a calma necessária para que não te nasça uma revolta tão assanhada... :)

      ( Obrigada. Beijinhos...)

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