© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

get off


Chegas-me por uma porta inesperada com nesga que te espreita ainda antes de entrares. Apressas os passos quando sentes que a abro no escurinho de uma noite chuvosa e fria, gosto do Inverno, tu sabes. Falas muito enquanto engoles um jantar apressado que te forra o estômago e a alma, é por isso que eu aprecio tanto chocolates. Partilhas com a Dona os sorrisos e com a fera umas lasquinhas de carne gorda e saborosa, sabes como ninguém conquistar o universo feminino, deverias ser obrigado a pagar por isso. Sentas-te pouco tempo, desesperas por uma cama quente e tardia que largas na madrugada seguinte, a chamada chega sempre muito cedo. Nunca te hei-de perdoar os abandonos antes do dia clarear, os de sol que te aquecem ao longe, os almoços sozinhos em vez de partilhados numa mesinha pequenina e azul situada lá para as bandas do Oeste, tal como nunca te perdoarei os momentos que respiras sem mim a respirar ao teu lado. Gosto, gosto muito de uma exclusividade impossível, improvável e certamente assassina, se transladasse o domínio do querer para o domínio do ser, mas a sabedoria disso não me faz mudar de ideias: é uma procura eterna que move as montanhas de mim. Da janela e quando me faltas espreito uns montes com moinhos de vento como os do antigamente, casinhas redondas com moagem pela força da natureza, mais ou menos como no amor. Mas o amor funciona com o tempo, não com o vento: rola e desfaz-nos em partículas pequeninas que nos deixam frágeis e capazes de construir, ele há com cada analogia engraçada.

Hoje de manhã tudo tinha, claro, menos encanto. A velhinha da direita perdeu um dente da placa, quer colá-lo, tem todo o direito. O da esquerda recuperou uns óculos sem mola ressuscitados, os objectos têm esta fantástica realidade do regresso à vida depois de mortos. A distância do telefonema é, lá está, muito maior do que a que queremos realmente considerar. O chocolate do pequeno almoço emagrecido por um corpos Danone foi-me dado por Prince, que me tinha desaparecido num Verão longínquo numa festa de adolescentes de pijama (sim, sim, também fiz dessas coisas). Oiçam-no, oiçam-no e expliquem-me como é que foi possível eu esquecer um génio desta maneira e por tanto tempo.

(Soubesse eu cantar e era bem capaz de te trautear isto ao ouvido, assim só corres o risco de eu me aventurar, o que não deixa de ter a sua certa piada.)

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