© Paulo Abreu e Lima

domingo, 23 de março de 2014

Os monges também vêem estrelas


 

As que já se foram e as que ainda estão por vir. Que isto do hábito é coisa presente, caleja a pele, a polpa e o caroço; mas uma vez ausente, ausente para sempre. Não deixa semente nem alguém crente. Sei do que falo: já fui monge, já vi estrelas e sorvi mel. Sei exactamente como se faz. Contudo, a mais elevada das magnificências não está em ensinar por onde se vai e como se chega. O sumo da liberdade não é o destino, não é o caminho, não é a razão que nos enleva - tudo isso seria magnicídio. Nada disso. Magnanimidade é outra coisa bem mais simples. É caminhar sem questionar e sem desistir de nós e dos nossos, porque até na morte, sobretudo no exemplo da morte, não deve escassear dignidade. Como as árvores, morreremos de pé; como as estrelas, ao alto, pereceremos no céu. Nós, os vivos que caminhamos sobre areias incertas, sabemos: os nossos mortos nunca desistem nem desistirão de nós. Como eles, honremos a ordem natural do nosso coração, ademais, enquanto quente pulsa, caminha e transige. Como o Universo,  que passa e fica.

10 comentários:

  1. Bonita metáfora 'os nossos mortos nunca desistem de nós'.. os meus não me saem da cabeça todos os dias, todos os dias!! (que sombras são aquelas?.. não sei qual a razão, mas esta imagem arrepia-me toda brrrrr) bjs

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    1. É, Marta, mas não foi para assustar. À memória dos mortos chamo-lhe alma e esta nunca desistiu de nos revisitar.

      (A sombra de um monge, pode ser...? :)

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  2. Fixo-me nesta passagem: "caminhar sem questionar e sem desistir de nós e dos nossos" e (...) "honremos a ordem natural do nosso coraçāo".
    E, no entanto, há qualquer coisa neste post que me sobressalta e incomoda. Será talvez o facto de não saber bem lidar com a ideia de morte. Mas não tenho a certeza...

    Beijinho :)

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    1. Nesta sociedade do novo, belo e saudável não cabe a doença e a morte. Tendemos cada vez mais a ficar horrorizados com a decadência natural das coisas e pessoas, não sabemos envelhecer em harmonia de corpo e alma e vemos na morte o fim, sempre o fim, como que quem por aqui fica não mais se lembrasse de quem vai. A vida só é boa porque é a única coisa que conhecemos esquecendo que quem nasce morre, ou melhor, querendo esquecer, porque cá no fundo sabemos bem disso mas como desconhecemos desconforta pensar no assunto. Nem precisamos entrar pela religião, qualquer uma delas, para conceber a morte como parte integrante da vida. Acredite, Isabel, que quem muitas mortes assistiu, mais vezes viveu e quem se foi, nunca voltou para se queixar. Graças a Deus (ou a nós, como preferir), todos os nossos mortos vivem em nós.

      Peço desculpa pelo arrazoado e, muito menos, não tome esta resposta como arrogante. É a minha experiência tão-só.
      Beijinho :)

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  3. Arrogante? De modo algum... Até gostei muito de a ler, porque além de esclarecedora, é sempre bom conhecer outros pontos de vista. E eu, que até sou crente, sinto um inexplicável desconforto em relação a tudo o que à morte diz respeito. ... :)

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  4. Quando se vive a velhice e a morte chega, é a ordem natural das coisas a funcionar. Fica a saudade e a recordação de quem parte. Se a velhice foi vivida com sabedoria fica mesmo um sentimento quase doce.
    Mas quando a morte chega fora de tempo …. é uma dor imensa. Faz medo, levanta dúvidas, confunde sentimentos … e neste caso a morte fazer parte da vida parece uma injustiça.

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    1. Compreendo, Maria João, mas continua a fazer parte da vida. É um risco que todos nós, sem excepção, corremos apenas por... estar vivos. Até porque quem diz "la vie est belle" acaba por ser publicitário de uma marca de cosméticos e, cheirando ou maquilhando bem ou mal, nada esconde e trava o que a Divina Providência tem reservado. O importante continua a ser não desistir de caminhar; por mais que custe, tentemos cumprir a nossa existência.

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    2. Queria acrescentar à última frase:

      (...) tentemos cumprir a nossa existência, cada um tem a sua, mais longa ou mais curta.

      * Claro que os sentimentos de injustiça e de revolta são indeléveis, mas é nossa obrigação continuar com os que ainda nos restam (este assunto é tramado, para não dizer um palavrão).

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