© Paulo Abreu e Lima

domingo, 23 de novembro de 2014

dia

Ele aparece e diz que o senhor do primeiro despeja milho aos pombos pela janela. O senhor do primeiro é o senhor que tem gato e cão no mesmo espaço, um feliz contemplado com a crença na partilha dos opostos. Os dois convivem em amena cavaqueira, ouviu dizer que se cultivou com o tempo, o tempo cura até os azeites da bicharada instintiva, deveremos sempre dar-lhe o devido crédito. Ao milho é vê-lo voar enquanto os pássaros poisam, a natureza tem maravilhas que invertem possibilidades, é simplesmente fascinante. Mais ou menos como ele a fascina a ela com a paciência que lhe dá ao ouvido em palavras ditas com os gestos, ainda dizem que os gestos são coisa de mulher. Ela pensa, mais ou menos devagar, agora sim, típica e eternamente feminino. Quando desce olha o local onde os pássaros poisaram a monte, espreita se há milho, mas agora existem uns cães. Continuam os dois de mão dada, com os mesmos passos, os mesmos olhos, a mesma loucura, deixem-se de considerar uma impossibilidade. Ninguém diria que o dia começou devagar e atrasado. Ninguém julga que do alto de um saber soberano nasceu uma mão submissa. Ninguém imagina que num corpo pequeno cresça um propósito tão espesso. Jamais uns pássaros que  poisam e um milho que voa adivinhariam um dia sossegado. Nunca a distância suporia uma luz tão premente. Ele sorri e diz-lhe que a queria na palma da mão. Ela imagina-se tão pequena como se lá coubesse, a realidade é um termo tão vago quanto a nossa ideia quiser (a doutrina interna é simplesmente o maior lugar do mundo). Logo depois chove e o ar aquece. É noite. Mas está tão claro que a vista dói.

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