© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

espelho meu

Ontem enfeiticei as ruas da cidade. Não de encantos, que a idade não permite, mas de olhares que procuravam encontrar nos outros um pouco de mim. Era a mim que eu procurava na senhora composta que segurava finamente na bolsa de mão, enquanto o filho, travesso, lhe fugia do alcance. Era de mim que eu queria saber quando olhava para o homem que corria na estrada, com pressa de lá chegar, acabei por não saber onde. Era por mim que eu gritava quando paguei o café, nos gestos da menina bonita, uma graça, por detrás de um balcão recheado de pampilhos frescos e pasteis de nata, que tentação. Era eu que vivia na correria dos passos imprecisos que recuavam na montra, que entravam e que saiam, que procuravam e não encontravam as linhas tortas do caminho. Fui andando devagar e perdi-me. O jardim estava coberto de folhas de Outono e lá em baixo o rio galgava as primeiras terras, enquanto o comboio apitava com medo das distracções. Nos bancos não havia gente, certamente porque os namoros de verão andam adormecidos, mas eu prefiro sempre acreditar que andam escondidos do frio. Os solitários dão de si mais nesta altura do ano. Pintam o coreto do meio, sobem os degraus do castelo, saem pela porta principal do sol, a mesma que me acolhe de braços abertos, mesmo quando cai a chuva ou cai o céu, quando sopra a vida ou sopra o vento. Retomei a direcção e fui encontrada. Em meia dúzia de palavras buscaram-me no meio de uma conversa fiada, a mesma desde há muito tempo, um cansaço, uma preguiça, uma dor de alma, uma condenação. A pouco e pouco fui sendo eu outra vez. O que nos dizem, o que nos dão, o que espiamos, o que esperamos, não há actos isolados, estradas que valham por si. Não há vidas sem espelho.

4 comentários:

  1. Absorvi cada palavra. Belissimo texto, CF ( mais uma vez......)
    :-)

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    1. Obrigada pela simpatia, Maria João... ( sempre tão sua...:))

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  2. CF
    "Sermos nós outra vez" é a chave que abre quase todas as portas para nos encontrarmos a nós próprios. Creio que foi isso mesmo que seis anos de análise me ensinaram.
    Um abraço especial da
    Helena

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    1. Pois é Helena. Por vezes é difícil. Há dias em que procuramos e não encontramos, outros em que nos deparamos com o que não queremos ser, e por aí em diante... Mas por isso mesmo constitui um privilégio, quando conseguimos...

      Uma braço com todo o carinho para si.

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