© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Saber fazer

 
 
Sentava-me na cama apenas com o olhar enquanto mordiscava o lábio inferior. Não era uma trinca casual, era ao meio, um pouco mais ao canto, lembro-a melhor em ralenti: deslizava os dentes desde o recorte externo do lábio até dentro da boca, arrastando com eles algum bâton que limpava com a língua. Depois ria-se, ria-se muito, até àquelas pérfidas gargalhadas de quem prevê o momento seguinte. Deitada de barriga para baixo, anotava e sublinhava com a ponta de um lápis já roído o calhamaço do Processo Penal, anotava e sublinhava vozeando para si e para trás, para mim. Sabia exactamente quanto o perfil do seu queixo atrevido e bem delineado instigava a minha concentração. Depois virava-se para cima, fazia do Código travesseiro, fixava o tecto e repetia todo o artigo, número por número, alínea a alínea, chamando por mim. Virava-se de novo para baixo, folheava mais rápido para trás e para a frente, decorava, esquissava, sussurrava, lamentava, cantarolava e voltava a olhar para trás. No fundo, sabia o que mais me açulava na cama. Uma mulher que sabe fazer bem, mais do que uma coisa ao mesmo tempo.

6 comentários:

  1. Ó Paulo, mas isso de ser capaz de fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo não é justamente uma característica das mais típicas do género feminino? (eheheh!...)
    Já sei: vai dizer-me que é o advérbio de modo que faz toda a diferença. Como em tudo, o importante não é o que se faz, mas o modo como se faz... ;)

    (Agora a sério: ainda ontem tinha pensado que tinha saudades destes seus textos, de pequenas narrativas acompanhadas das suas magníficas fotografias (e às vezes de música, também). Mas estas coisas não podem ser a pedido, é claro. Têm de surgir espontâneas, só porque sim, ou por razões que não importam a quem as lê.)

    Gostei.

    Beijinho :)

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    1. Está a ver como um advérbio é tão solícito a julgar o verbo, Isabel? :-)

      (Tem mais a ver com estados de alma, com tempos e vontades; tudo junto, quase sempre...)

      Muito obrigado, beijinho :)

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  2. Ai! Paulo que este post dava pano para mangas...
    Mais do que uma coisa ao mesmo tempo?!...
    E fazer só uma, muito tempo e muito bem? Que lhe parece?
    Abreijo

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    1. Caríssima Helena,
      Só uma coisa, muito tempo e muito bem? Parece-me igualmente muito bem. Neste campo, a virtude, salvo seja, nunca se encontra no meio. Havendo pano, situa-se sempre nas extremidades :-)
      Abreijo

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