© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

migalhas

Cada vez olho mais para a vida que encontro nos olhos das pessoas e dos animais. Não me incomoda que me considerem entregue à trivialidade do essencial, vista por quem ainda se deslumbra com um bom carro e uma boa casa. A mim, nada disso me deslumbra. Felizmente não padeço de uma qualquer doença fatal, pelo menos que eu conheça, que me faça redimensionar os astros e perceber a importância do cheiro da manhã, da beleza do sol da tarde, da meiguice de uma pata dos cães que acampam todos os dias à minha porta. Honestamente, e mais ou menos a meio do percurso de uma vida normal, mais ano, menos dia, avalio a realidade cada vez mais pelo que ela vale em pormenor. E pormenor é uma lareira quente, uma brisa fresca, um abraço, um bolo de chocolate, uma feijoada, um queijo de cabra seco ao sol. Para mim, claro, que para além de assoberbada com a maravilha do quotidiano me entrego por completo a um bom repasto, uma boa mesa, a um lugar sossegado. Ainda há pouco o meu filho se regalava sentado da mesa da cozinha, em amena cavaqueira com o amiguinho do lado. Falavam da professora de ET, do professor Paulo, do jogo de amanhã, do arroz doce cremoso do almoço, do caderno cansado de matemática, e estavam felizes. A questão dá-se mais tarde, pela adolescência, inicio da idade adulta, quando julgamos que para sermos grandes necessitamos de fazer em grande, de pensar em grande, de viver em grande, de sonhar em grande. Hoje já me chega tudo em pequena escala, outra vez. Talvez porque o caminho me tenha feito desistir de objectivos impossíveis, eventualmente porque retido das pequenas coisas a grandeza dos meus prazeres. Os prazeres mudam com o tempo, é um facto. Encontram-se intimamente ligados ao poder da arte de sermos verdadeiros, um trabalho de formiga que pode não ser bem visto nem bem recebido. Migalhas é coisa de bicho pequeno. Por isso a felicidade deverá ser bem maior.

4 comentários:

  1. Sinto o mesmo, já pensei grande e era mais infeliz e agora que penso pequenino...sou mais feliz.
    ~CC~

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    1. CCF, estaremos eventualmente no mesmo local do caminho... :)

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  2. Quando escrevem o que sentimos, ficamos sempre um pouco mais acompanhados.

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    1. Obrigada pela companhia, mãe sabichona... :)

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