© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A luz gélida da ausência

Percorria a grande cidade. Toda iluminada por um clarão glaciar que se estampava nos prédios e não marcava sombra pela calçada fria, vazia de gente, de animais, de mendigos. Nenhum automóvel, autocarro, moto, bicicleta, skate pelas ruas. Um silêncio ameaçador – nada, mas mesmo nada bulia –, e cáustico, vagava apartamentos, blocos de betão armado, fachadas, portas, empenas, frestas e vidraças azuladas. As poucas árvores pareciam feitas de plástico maleável, os relvados de tapetes sintéticos verde-garrafa e o pequeno lago de espelho acrílico intenso. Era recorrente e medonha a imensa maquete que percorria naquela manhã de domingo. Num registo cinematográfico, Damiel de Der Himmel über Berlin encontraria a sua trapezista feita em mármore fria caída ao lado dos cisnes deslizantes inertes de carbono. "A grande cidade é uma imensidão de pedra dura e nua", pensou.

Ao fim do dia voltou à serra e encontrou esferovite esgravatado em vez de neve, plasticina em forma de rocha, papel-prata esterilizado como nuvens, pequenos líquenes de borracha e um uivo metálico que sugeria vento. "Muito bom, tudo como dantes, mas muito mais macio", concluiu todo ele níveo. Em  fibra de vidro.






8 comentários:

  1. Lindo....poderia ser acompanhado de Fake Platic Trees dos Radiohead...será que este mundo irá ser assim?

    Ainda sinto o cheiro a líquenes e casca de árvores do botânico, chovera há pouco, e havia gotinhas de água nas folhas...

    Não posso crer...isto é pura ficção, Amigo.

    Belo texto.

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  2. Pronto, Virgínia, já lá pus. Combina muito bem.
    Isto foi quase um post a quatro mãos :)

    Beijo e obrigado

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  3. Lindo, lindo!
    Adorei.
    beijinhos

    Lucia

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  4. Tudo se transforma e a realidade destrói a idealização que compõe a nossa realidade!
    Um post bem imaginado...

    A gente perde-se, mas reencontra-se.
    Um grande abraço

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    1. E o Amigo Manel há oito anos com o mesmo e excelente blogue... (eu cá já vou no 4º em todo este tempo)
      Outro grande abraço

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  5. Não se encontra no exterior, nada que seja de dentro.
    Nem que para isso se tenha que trocar as voltas ao fígado e pô-lo no lugar do coração.
    Dentro está a água que é água, a terra que é terra. A neve que é neve. O riso que e riso. E, a vida, que nos é, verdadeiramente, de-vida.

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  6. Ora nem mais, Filipa.
    Tudo o que verdadeiramente efervesce está cá dentro; somos nós que damos vida às coisas, aos elementos, às pessoas que nos rodeiam. Se o formos capazes, caso contrário estamos mortos por dentro e nada acrescentamos lá fora. O leito do rio só corre, porque nos percorre o corpo. A visão é egocêntrica, concedo, mas profundamente humana. Penso.

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