© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 7 de maio de 2013

Cascatas e cachoeiras portuguesas (iii)

Por convicção, não sou chegado a premonições. Por natureza, trago-as comigo. Começava a ficar preocupado com a última, era mázinha, arrastava consigo um assombro, adornado de receio, não muito comum na palete de sombras com que tinjo inabilmente pecados adâmicos.

Chegado à terriola, encosto à berma e pergunto a um pequeno grupo de convivas onde se encontra a cascata da Pedra da Ferida:
 
– Se fosse a si não ia… – aprontou-se o mais festivo.
– Porquê…? É perigoso? Há assaltos por lá…? – Indaguei inquieto.
– Assaltos? Isto é tudo gente de família! Mas se fosse a si não ia…
 
Ainda fiquei à espera de um "mas o senhor é que sabe…". Em vão. Indicaram-me, visivelmente incomodados onde ficava a dita, e repetiram sequencialmente um a um: "eu não ia, eu não ia, eu não ia…"

Posso perder-me numa categórica premonição, mas nunca fui homem para virar costas a vontades. Sobretudo às intrigantes. Sabia que grande parte do trajecto era um trilho pedestre ao longo da Ribeira da Azenha e nos primeiros trezentos metros tudo parecia fácil. Um caminho estreito, mas bem definido; uma flora exuberante, muito verde; passarinhos a cantar e trutas selvagens a chapiscar, viçosas e enérgicas, águas acima. Os safados dos velhotes não me queriam mostrar o seu tesouro, pensei lampeiro.


Decorridas aquelas três centenas de metros, senti os pés molhados, as pedras de musgo mais viscosas e escorregadias, a ribeira muito mais abaixo, em que qualquer pedrinha que se desprendesse a cada meu passo demorava uns bons segundos a cair na água. Mais: o barulho das trutas viçosas passou a assemelhar-se ao de um imenso réptil que me acompanhava silencioso e paciente lá do fundo. A própria paisagem, agora mais densa, deixou paulatinamente o verde vivo e emergiu parda, agreste a fugir para o azul-cinza, surgindo escarpas de difícil escalada, aqui e ali deixando abrir pequenas frestas donde saíam frágeis arbustos que em nada ajudavam a ascensão abrupta. Não fora a placa rachada com a indicação de 150 metros e tinha desistido. Desistir não é bem o termo, havia toda uma subida que tinha de ser descida e, ao contrário do provérbio, a descer todos os demónios empurram… Teimoso, cheguei. Avistei duas cascatas gémeas, uma em cima da outra, cada uma com mais de vinte metros. Despenhavam-se sobre uma grande bacia de água escura e gélida, donde por instantes surgiam do fundo enormes bolhas de ar: só podia ser o medonho bicho que me acompanhou, o verdadeiro protegido dos aldeãos. Ou a minha premonição...
 
Cascata da Pedra da Ferida, Espinhal, Penela

De resto, a descida foi pacífica e calma, sem pressas, contemplativa, muito suave e, principalmente, sem medos.

14 comentários:

  1. Deixou o melhor para o fim não foi, Paulo? ;)
    Esta é a minha prefrida da série "Cascatas e cachoeiras portuguesas". É lindíssima a primeira fotografia e também gosto muito do texto, um pouco mistterioso e quase poético, encantador.

    Beijinho :)

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    1. Menina Isabel, esta não é a última, foi a terceira cascata, mas tenho mais umas dez...

      O texto espelha na íntegra o que senti. Um receiozinho, pronto :)

      Obrigado e beijinho:)

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    2. Pensei numa trilogia, não sei porquê, porque é o número da perfeição, princípio, meio e fim, sei lá...

      Mas ainda bem que tem mais, menino Paulo. Que venham as outras então. ;)

      Eu gosto...
      Beijinho :)

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  2. Adoro o texto. É simplesmente delicioso, Paulo e cria suspense!

    Eu se fosse a ti não teria ido, mas ainda bem que foste!!

    Que seria de nós sem a poesia destas fotos? ( a última bem realista)

    Pªara a próxima sugiro um vídeo para podermos ouvir o murmurar da cachoeira. Adorava!!

    Bjinhos

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    1. Amiga, estou tão imiscuído no mundo da fotografia, que vídeos só por acaso. Depois, levar máquina de filmar e de fotografar é tralha a mais... Confesso que tive algum receio de escorregar ribeira abaixo. Nestas fotos não parece, mas começou a ficar bem lá em baixo à medida que ia subindo. Se fosse Verão, mergulhava na bacia e matava o bicho :))

      beijos,

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  3. Não podes dizer que não te avisaram. Mas percebo-te, claro. O simples facto de nos tentarem limitar o objectivo pré definido, ainda para mais sem razão aparentemente válida, serve de pouco. Ou serve de atiço, que a contrariedade tem dessas coisas, nunca percebi... Pelas fotos, parece-me que valeu a pena. Por certo, só os pobres dos ténis, acharão que não... :)

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    1. Bolas, CF, cheguei ao carro sem solas, completamente descalço. Não sei se é proibido conduzir assim, mas com havaianas deve ser mais perigoso... :)

      Sou um teimoso, é o que é. Em quase tudo.

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  4. E já agora, uma pergunta. Donde vem esse nome tão interessante Cascata da Pedra da Ferida? I wonder....

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    1. Curioso como sou, é óbvio que tentei saber. Mas ninguém me conseguiu explicar, nem eu consegui descobrir a razão. Fiquei sem sapatos, mas ferido, ferido, não :)

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  5. Não sugeria levares camaras de vídeo para a caminhada, mas fazeres o video com a tua câmara fotográfica. Foi assim que fiz o meu no Pico do Arieiro e não ficou mal. Curtinhos ficam giros. Não tenho paciência para longas metragens :)))

    Bjo

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    1. Ó Virgínia, tem toda a razão! Até me esqueço que a minha máquina tem das melhores imagens de vídeo do mercado e, acredite, nunca usei! Shame on me... :(

      Bjos,

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  6. Respostas
    1. Céus! Aquelas águas são gélidas... Também não gosto delas quentes, mas tenho corpo latino, não escandinavo :-)

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  7. Se há sensação maravilhosa, é no verão tomar banho nas aguas geladas de um rio de montanha, sair da agua gelada e deitar o corpo nas pedras aquecidas pelo sol!
    Desculpe a ousadia Paulo, mas um dia esqueça o corpo latino e experimente!
    Depois, até as fotografias lhe vão transmitir novos sentimentos!

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