© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 20 de agosto de 2013

ΚΑΤΑ ΤΟΝ ΔΑΙΜΟΝΑ ΕΑΥΤΟΥ*

Quando me perguntam onde melhor sinto o som do silêncio, a resposta é pronta e sincera: em minha casa na madrugada avançada ou num grande cemitério a qualquer hora. Não encontro nada de lúgubre nisto. É um facto. Junto ao mar não oiço silêncio, escuto as ondas, o vento e as gaivotas; na imensidão dos campos, os pássaros e as cigarras; no topo da montanha consigo, presciente, escutar o frio do próximo Inverno e o subsequente degelo da Primavera. Dir-me-ão: ah, mas e na igreja, na capelinha…? Respondo: impossível não ouvir a miríade de orações, o coro de promessas e os diálogos, com Ele. É humano e Divino.
 
A partir das duas da manhã oiço nada em casa. Mentira. Por vezes atento no estalar da madeira dos móveis e no estalejar das molduras dos quadros e aí costumo pensar: olha, o Bual deu de si, a menina do Noronha sussurrou-me ao ouvido e o pequeno desenho de Vieira desconjuntou-se. Num grande cemitério também não oiço os murmúrios ininteligíveis que me embalam e os corvos, sabe-se lá porquê, não crocitam, saltitam sem pisar as folhas secas. E os mortos, Deus os abençoe, esses fazem tanta companhia…
 
O Cimetière du Père Lachaise, com os seus quarenta e três hectares e milhares de imponentes ciprestes, é o maior de Paris e, porventura, o mais famoso do mundo. Rasgado por imensas avenidas, praças e ruas, é detentor de belíssimos monumentos e inacreditáveis túmulos, sepulcros e mausoléus. Por lá jazem nomes como Auguste Comte, Molière, Marcel Camus, Marcel Marceau, Yves Montand, Gilbert Bécaut, Maria Callas, Chopin, Édith Piaf, Jim Morrison, Delacroix, Modigliani, Balzac, Marcel Proust, Oscar Wilde, Jean de La Fontaine e Cyrano de Bergerac, entre muitos outros.
 
Só há uma outra coisa que me comove tanto quanto o magistral silêncio de um grande cemitério: as flores frescas e viçosas postas criteriosa e diariamente em alguns túmulos. Vendo-as, sei que alguém sofre, ama e quer perpectuar a vida térrea de quem já partiu. Não há maior silêncio do que este.
 
 
Os corvos silenciosos de Père Lachaise...

O túmulo frugal de Édith Piaf

*Túmulo discretíssimo de Jim Morrison com a frase em grego ΚΑΤΑ ΤΟΝ ΔΑΙΜΟΝΑ ΕΑΥΤΟΥ, que significa qualquer coisa como "Mate o seu demónio interior"

Monumento de homenagem às vítimas do trágico acidente em 2009  no Oceano Atlântico do voo Air France 447, Rio de Janeiro - Paris. Morreram 228 pessoas.
 

16 comentários:

  1. Ups, pensei que era a unica a tirar fotografias em cemitérios ... afinal não sou :)
    Embora tenha mais tendencia a tirar fotografias naqueles pequenos e bonitos cemitérios situados no cimo de pequenos montes.
    Infelizmente os meus sentidos mudaram quando visito um cemitério. A morte de alguém muito chegado transformou a paz e silencio que eu sentia quando entrava num cemitério, num sentimento muito rude que não sei explicar.

    O meu silencio está no cimo das montanhas, sem duvida! É lá que o consigo viver!

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    1. Maria João,

      Percebo a mudança, mas porventura com o tempo essa sensação "rude" poderá dar lugar a uma outra. O tempo dos vivos leva tudo, principalmente a rudeza...

      (eheheh... muitos cemitérios são autênticos baluartes da arte sacra, por que não fotografá-los?)

      O cimo das montanhas é muito calmante, sim!

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  2. Sem palavras.....no silêncio.

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  3. Paulo, apesar das minhas milhentas idas a Paris, apesar da sua enorme fama e do que ouço dizer e leio sobre os seus túmulos, considerados verdadeiros monumentos, acredita que nunca estive no "Père-Lachaise"? Porque não gosto de cemitérios. Porque vejo sempre neles qualquer coisa de profundamente tétrico, uma soturnidade, uma dor difusa da qual me esquivo, sinal evidente da minha paradoxal relação com a morte, uma mistura de racionalidade e emoção, que nem sei explicar bem.
    E, no entanto, ao ler esta sua lindíssima descrição, ao olhar as suas belíssimas fotografias impõe-se-me a certeza de que incluirei o "Père-Lachaise" na minha próxima visita a Paris. Porque o que se sente com este seu "som do silêncio" é uma paz imensa, descomunal, apenas semelhante à que eu só encontro en El Rocío, quando me detenho diante da "marisma" e experimento a magia quieta daquele lugar.
    Através das suas fotografias e destas suas palavras tão sentidas, volto uma vez mais a Paris. E comovo-me, até, por voltar a sentir de novo a emoção tão particular que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Obrigada, pois, por me trazer de novo esta "minha cidade".

    Beijinho. Grande! :)

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    1. Isabel,

      Não hesite, vá, sim. Verá monumentos belíssimos, abundante vegetação e corvos silenciosos :) Depois, não é todos os dias que se está na companhia de um Chopin, de um Balzac, de um Modigliani...

      A Paz de um grande cemitério é indiscritível, sério!

      Beijinho :)

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  4. Olhei e voltei a olhar, demoradamente, as fotografias. Todas lindas, com especial destaque para a do corvo: absolutamente tocante!...

    Outro beijinho, ou melhor, desta vez, "un bisou" :)

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  5. Belo texto, Paulo.
    Aqui está porque é que, na semana passada, escolhi este seu canto como o "blogue da semana" para o Delito de Opinião.
    Leia o que lá escrevi e compreenderá o gosto com que o visito.
    E esta hein?!
    Bjo

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    1. Tive conhecimento, Helena, mas não sei por que razão, daqui ainda não acedo aos blogues da Sapo, mas vou tentar mais logo. De qualquer forma, muito agradecido pelo destaque. É bom ser gostado por quem tanto gostamos...

      Beijo!

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  6. Concordo: não acho nada de lúgubre nisso. Eu mesma aprecio bastante o sossego que se encontra junto dos que já partiram. No entanto, há que aceitar a chilreada dos pássaros e o vento nas árvores, que, apesar de serem abetos na sua maioria, se fazem ouvir (principalmente quando deixam cair aquela bola castanha, que não sei o nome).
    Adorei as fotos. Têm uma beleza especial.
    Beijinho e uma boa terça feira

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    1. Muito obrigado, Anita!

      Uma boa quarta-feira para si também :)

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  7. Quem assim cuida os mortos, é a si que embala. Quem assim se dedica, é ao seu corpo que alimenta. Entendo, claro, e também a mim me sensibiliza. É sempre um sinal de que quem partiu ainda se encontra muito vivo, no corpo de quem cá fica.

    ( Nem sempre o silêncio me dá sossego, mas fá-lo muitas vezes. Há outros locais onde o encontro sem me esforçar, por vezes no meio de uma multidão... )

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    1. Escrevo sobre o silêncio que me sossega, que me embala e dá mais prazer. Do outro quero distância, é mais fúnebre que qualquer ossada. O silêncio no meio da multidão requer exercício e muito treino... :)

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  8. Embora mantenha uma relação ambígua com os cemitérios, reconheço que transmitem um silêncio que nos levam a uma evasão do mundo terreno.

    Para além de serem verdadeiras aulas de história - o Cimetière du Père Lachaise e o Cemitério Judeu de Praga têm milhares de lápides únicas pela sua beleza e nos mais variados estilos de arte.

    As fotos estão magníficas, como sempre!

    Isabel BP

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    1. Não conheço o de Praga, Isabel, mas acredito: Praga é toda ela linda...

      Obrigado!

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  9. Onde encontro verdadeiro silêncio é no fundo do mar. Quando mergulho não oiço nada e é a paz total. Ainda há dias o fiz na nossa Luz. Os peixes são silenciosos, as estrelas do mar só se agitam à passagem e não há mesmo qualquer ruído.
    Já há muito que não vou a cemitérios, desde que a minha sogra faleceu. Detesto cemitérios e sobretudo a morbidez de quem lá vai nos dias indicados por convenção.

    Já me tinham enviado uma foto do Pére Lachaise ( o Petit-Ange-Noir) daquele forum onde nos conhecemos...tenho-a aqui. Mas a arte sacra....não me diz nada! Sei que dizer isto é sacrilégio!!:)

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