© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

um homem à frente


 
 
Ufano, garantia não ter permanecido agrilhoado ao passado. Exactamente como lia nos livros mais idóneos e nos blogues de gente importante, com Vida e com Mundo. Orgulhoso, dizia agarrar com as duas mãos o presente, dia após dia, como os poetas dissecam sílabas e palavras, almejando a melhor melodia para embalar mentes sábias de copiosa sensibilidade. Impante, citava os críticos literários da moda, os que todos conheciam porque os outros também, os gurus do neo-positivismo comteano. Cara lavada, fixava sem pestanejar o interior dos olhos dos seus interlocutores: o passado mora na rua de trás, conheço-lhe os passeios, as gentes e as lojas, pois há que aprender com todas as coisas boas e, principalmente, com as más das anteriores moradas, mas temos todos de passar o semáforo… E já se encontrava na grande avenida do presente que o conduziria à maior e inexpugnável via do futuro. Contudo, cauteloso e avisado, o discurso fechava-se-lhe com rotunda prudência, lembrando as palavras de José Cardoso Pires: «o bem mais precioso do homem é a memória».
 
Chegado à noite, polia então a relíquia. Escutava-a no youtube, seguia-lhe no instagram, no facebook e demais apps, consolado. No remanso da sala escura vociferava intermitente: tenho preciosidades para dar e vender, posso viver o resto dos meus dias à conta desta devoção, reflectir como um monge de burel do alto do claustro, e até da escrita neo-cordel, olaré! Depois, recordar é viver, oh yeah…
 
Madrugada fora, quando fenecia, grogue de alegria e de absinto, enroscava-se virado para a janela com vistas estreitas e foscas para a avenida do presente e com as costas bem acomodadas no quentinho do passado. Tudo pela preciosidade da memória, claro, e por ele, um homem à frente. Da morte.

16 comentários:

  1. Ó meu caríssimo Paulo, desta vez estou perplexa ou/e a perder qualidades. Este é o primeiro post que você escreve cujo sentido me escapa. Que bizarro homem, este, que você descreve que vive sem viver e que olha sem ver...

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  2. :-)))))) LOL

    Está a ver como, apesar de encriptado, percebeu?

    É complicado não direccionar textos, mas muita gente assevera a pés juntos que não está presa no passado, mas na solidão do lar não faz outra coisa, definhando e morrendo ante a vida. Mau, muito mau...

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  3. Apesar da sua vertente críptica, parece-me haver neste texto um tom crítico relativamente a uma certa tendência a ficar cegamente preso ao passado e, com isso, impedido de viver a vida na sua plenitude e permanente surpresa.
    A mim, o que mais me toca neste post é a relação entre o texto e a fotografia. É o comboio que passa, que penetra na escuridão do túnel (metáfora de vida, que flui no tempo, quase imperceptivelmente a caminho de um porvir desconhecido) e o homem que fica no cais e o vê passar, como quem estagna no presente e deixa passar o tempo e a vida.
    ( O comboio, neste caso, será o metro de Paris, parece-me, mas, no caso, isso nem importa...)

    Beijinho :)

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    1. Isabel, não tenho por que não ser sincero: critico todos. Os que se acham donos de uma sapiência superior e asseveram que só se deve aprender com o passado e viver o presente, como, obviamente, todos aqueles que em público dizem o mesmo, mas em casa visitam todos os dias o mausoléu... Quanto à foto, a solução está mais em baixo, na resposta que dei à Helena.

      (É o feiinho metro de Paris, sim)

      Beijinho :)

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  4. Os anos que me atravessam dizem-me para não avaliar criticamente escolhas de vida, Paulo. O livre arbítrio, eventualmente a par com a memória, é um bem preciosíssimo... Há eventualmente uma busca de harmonia, um segredo bem guardado, construída com base numa convergência. Do que se quer, do que se escolhe, e não menos importante, do que se consegue... Mas ninguém morre antes do fim, ora. Quando muito adormece ou vive mais devagarinho, um direito igual à liberdade, por exemplo... Se me levassem a memória, por certo deixaria de ser eu, ui, Medo!! Se me levassem a hipótese de escolha, seria um eu estranho, direccionado ao mundo recto, sem vontades. Onde a memória, caramba, de pouco me serviria...

    ( Um beijo... :)

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    1. Interessantíssima resposta, CF. Só lhes acrescentaria Lucidez às outras duas preciosidades...

      (Beijo:)

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  5. Que curiosas as diferenças entre as pessoas. Para mim o homem deixou passar aquele combóio porque queria. Não porque ele se lhe escapasse. Vai, ou irá tomar outro que será o "seu" combóio, aquele de que ele está verdadeiramente à espera...
    Quanto à memória...bom, quanto à memória, se ela for selectiva, óptimo. Se não, vale a pena, de vez em quando, descalcifica-la, como se faz à máquina do café!

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    1. Helena, uma confidência do autor da foto: o homem apanhou aquele comboio mesmo, só ficou à espera que parasse completamente para poder entrar. Era aquele mesmo o seu comboio :-)

      A memória cristalizada em calcário só provoca chatices e, ainda por cima, nem é preciosa, nem bonita...

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  6. TERESA PERALTAoutubro 17, 2013

    No meu ponto de vista, o Paulo refere que a “memória”, quando isolada da tensão dialogante, entre ela mesma e a contemporaneidade activa, torna-se um passo para a “morte”; no tempo e no espaço... Deixa então subentendido, que as actuações perfeitas se destacam pela maneira como esse diálogo é resolvido. Concordo em absoluto com a Teoria, mas, na prática, a mistura desses ingredientes, com as doses correctas para cada situação, torna-se, então, o busílis da questão :)


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    1. Teresa,

      Não almeja ser uma teoria, Deus me livre, passa tão-só por uma mera constatação. Cada um vive como pode, sabe e consegue. Não vou para além disso :)

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    2. Teresa PERALTAoutubro 18, 2013

      Realmente, deveria ter escrito "em teoria"... Comentei este post porque gostei da sua reflexão. Obrigada :)

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    3. E eu gosto dos seus comentários, obrigado :)

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  7. O passado não acomoda as nossas costas ... nem no presente, nem no futuro!
    A memória, concordo com a Helena, tem que ser muito selectiva. Caso contrário transforma-se em caos!

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    1. Maria João,

      Quer se concorde, quer não, há quem "viva" totalmente acomodado ao passado. Selectivo ou caótico... oh-ho!

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  8. Partindo do princípio de que o tempo existe.
    De que o tempo flui, numa única direcção.
    Partindo do princípio de que o passado nunca resiste.
    Ou se resiste, resiste fluído, à contemplação.
    Partindo do princípio em que o haver de ver, nunca foi visto.
    De que há um início,
    Um aqui e agora,
    Um tempo de espera,
    Esse, em permanente demora.
    Partindo do princípio...
    É que, se do meio ou do fim,
    Nada disso, então...insiste *

    * (a morte, incluída)

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    1. Ó Filipa, que bonito e que privilégio receber uma Poesia assim.

      Sem qualquer dúvida, a Filipa existe, parte das palavras e chega aqui, até mim.

      Obrigado.

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