© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O reflexo do espelho é tolo

 
Há muitos anos, ainda adolescente, sucedia-me uma coisa bizarra que à altura não sabia explicar. Na casa de banho, no quarto, na sala, nas vitrines das lojas, nos elevadores públicos, enfim, onde houvesse um espelho que me reflectisse, por vezes, não identificava a minha cara. Aproximava-me e olhava os meus olhos reflectidos e não os reconhecia. Como os cães e os gatos e a maioria dos animais. O teste do espelho, baseado no orangotango de Darwin e posteriormente desenvolvido por Gordon G. Gallup como medida de autoconhecimento, era então para mim um paradoxo. O fenómeno chegava a ser aterrador – Eu sou aquele? Aquele? Quem é aquele indivíduo? Eu? – e começava a suar, chegava mesmo a sentir-me mal. Não se tratava de uma questão de vaidade, tão comum àquelas idades; não achava que fosse feio ou bonito, nada disso, o que não admitia e me assustava era conceber que aquele vulto fosse eu. Coisa de tolo, uma tolaria que passou.

Ontem, diante um espelho da casa de banho de um restaurante, olhei os meus olhos e cara reflectidos e aconteceu-me o mesmo – Quem é aquele indivíduo de quarenta e tal anos, pá? É outro cliente? Um empregado? Um orangotango…? –, acabei por secar as mãos e voltei para a minha mesa.

Quando andamos ensimesmados, muito voltados para nós, para os nossos pensamentos e problemas, não vemos nada. O foco é tão persistente em nós, julgamos ser tão importantes e únicos que nem sequer vemos os outros. E quem não vê o seu semelhante, e as semelhanças do seu semelhante às suas, jamais se reconhece em que sítio for. Quanto mais num pífio espelho. Explicado.

6 comentários:

  1. Noutro contexto diria que é tolo e doloroso!
    Principalmente quando o sentir nos suscita a sensação de leveza da juventude e o espelho nos sugere os 40 e tal anos ... ;)

    Bonito texto e bonita musica, Paulo.

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    1. Para muitos talvez assim seja, mas então relativizemos: quem dera a um nonagenário ver-se com os tais quarenta e tal anos reflectidos - e daí talvez bastasse um quinquagenário... ;) Agora a sério, Maria João, sinto-me suficientemente confortável com a minha idade física, em havendo saúde.

      Muito obrigado, mas o texto está tão simplesinho... (quanto à música, tenho vindo a descobrir Brian Crain, um jovem compositor de excelência que passa pela net quase despercebido, uma pena)

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    2. Pois!!!! Eu até diria mais. Quem me dera ser nonagenária e ver-me ao espelho!!!! ;)

      Eu gosto de textos simples, Paulo. E quanto ao Brian Crain só ontem o descobri, graças a si. O resultado foi que trabalhei a tarde toda a ouvi-lo! :) E que bom que foi!

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    3. Nem mais, Maria João, nem mais! :))

      (Há uma composição dele, penso que se chama "Wind", que nos eleva ao céu... Que bom ter gostado! ;) )

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  2. Quando li este texto pela primeira vez pensei imediatamente no mito de Narciso e no "espelho meu" dos contos tradicionais. Mas não é de nada disso que se trata aqui, acho eu. É antes, justamente, o seu contrário: o facto de tanta vezes estranharmos a imagem que o espelho nos devolve, porque ela não é exactamente a ideia que temos de nós. Ou o facto de andarmos de tal forma concentrados no nosso mundo interior que nos escapa muito do que está à nossa volta.
    O que eu gosto nos seus posts, Paulo, é que eles me fazem sempre pensar em muita coisa (ainda que possa não ser exactamente o que o Paulo terá pensado ao escrevê-los).


    (Adoro a palavra "ensimesmado" e muito especialmente a música deste post. Confesso que nunca tinha ouvido falar em Brian Crain, mas gosto muito do que nos tem mostrado. Agradeço-lhe, pois, também por isso. E pode ser mais....)

    Beijinho :)

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    1. A Isabel bem me falava de um comentário seu e eu na altura não percebi a que é que se referia... Pois não queira saber onde eu o eu encontrei :/ Enfim.

      O "fenómeno" que me refiro terá muito a ver com excessiva concentração interior, com deambulações de pensamentos, não sei bem, mas que me assustei, oh-ho...

      Beijinho e desculpe-me o lapso quanto ao comentário...
      :)

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