© Paulo Abreu e Lima

domingo, 2 de março de 2014

laranjas

O senhor Ernesto polia os dentes enquanto Guilhermina bordava paninhos da loiça. Havia uma telefonia a tocar na Rádio Renascença, e na mesa umas laranjas mandavam um cheiro forte. No portal da vizinha havia uma rampa construída não sei porquê, no tempo em que as acessibilidades não existiam no papel, mas eram precisas e importantes para quem se lembrava delas. Em frente um portão de rede encarnado guardava dos olhos do mundo uma casa pequenina, onde Violeta criava gatos. Eu gostava de espreitar Violeta. Era quase cega e vestia-se de preto, descascava maçãs com a mestria de quem tem olhos e comia-as com a habilidade de quem tem dentes, enquanto os gatos passeavam de rabo eriçado por entre as cascas e o colo dela, excessivamente reduzido para tanta bicharada. Ninguém me deixava bater na porta, ela era uma bruxa má. Por causa disso eu imaginava-a a reunir os gatos pretos e a lançar feitiços cabeludos que um dia me acertariam, estivesse eu na janela, estivesse ela na mesa, houvesse um gato preto por perto, e ela desse conta de mim. Mas mesmo assim eu não arredava. Era assustadora, a velha, e feia de meter dó. O filho tinha morrido há muito e deixara-a entregue ao mundo e à doença, na época em que retaguarda social era a misericórdia alheia que não fosse batida pelo medo. Por tudo isto apenas Dona Lurdes lhe dava algum zelo, a mesma que guardava a igreja, o salão de festas, as campas floridas e os mortos do cemitério. Uma mulher daquelas, que tinha as chaves da morte, jamais poderia ter medo. Eu tinha muito, mas um dia segui-a e entrei lá dentro, à revelia do povo. A casa cheirava a vestes bafientas e a gatos, e a velha mal falava. Lurdes esclareceu-me que a pobre senhora só necessitava de cuidados. Que o mundo a banira por fealdade, por tristeza, por viuvez e mau palavreado, complexo suficiente para exilar por desconsideração e desmérito, criaturas sem préstimo real. - Pouco mais precisa, dizia-me,  do que umas palavras que amenizem o que o corpo não consegue ter.

Lurdes nunca dizia à minha avó que eu entrava, mas disse-lhe muitas vezes que ela tinha uma neta afoita. Afoita era para mim nome de um homem que tinha andado na guerra, no masculino. Nome de nascimento, de baptizado, de bilhete de identidade, de sociedade, o nome de sempre ali na aldeia. Na altura não percebia o porquê de Lurdes me chamar daquela forma, mas gostava muito. Era realmente sinónimo de braveza e dureza, e nada era melhor do que sentir-me valente, no fundo qualquer coisa próxima do significado aplicado. Quase sempre, na saída, Ernesto oferecia-me uma laranja, nas pausas da polição. Fingia que não via de onde eu vinha, e gostava muito de mim (talvez porque soubesse exactamente de onde eu vinha). Desde essa altura, devem existir poucas coisas no mundo que me cheirem melhor do que laranjas. Não sei se pela fruta, se pelo sumo, se pelo facto de ter vencido um medo importante: nada é mais limitativo do que o medo entranhado num povo. 

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