© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 17 de abril de 2014

quando muito, mas quase nunca

Tenho muito mais medo da loucura do que de um toiro bravo. A questão de supostamente a tratar por tu é secundária, simplesmente porque não corresponde à verdade. Ninguém trata por tu o desconhecido, e por conseguinte ninguém entende a fundo os meandros de uma vida interior vivida ao limite do sentir desfasado, do patamar do que se considera são, do lado de dentro do que se ignora. Engraçado como a generalidade da população me afirma um medo terrível das doenças do corpo, como se as mesmas nos retirassem o dom da qualidade de vida, se por azar se estabelecerem. Compreendo, como qualquer mortal também eu tenho receio das doenças que nos comem aos bocadinhos, dolorosas, sanguessugas, nefastas. Não entendo porém o desleixo das preces quanto à doença mental e a ausência final, cada vez mais a realidade dos nossos dias. Joaquina, por exemplo, não sabe que se chama assim. Não conhece Maria, sua filha, esqueceu demasiado cedo o rosto velho de Aurora, sua mãe, mais lúcida do que eu. Vagueia durante o dia com uma boneca de pano ao colo, levanta-se de noite e deita-se em cama alheia, olha para o vazio do jardim como quem nada procura. É este, é este o vazio que me assusta, quase tanto como a insanidade de quem encontra lá dentro vozes a mais, por qualquer desaire cerebral incompreendido. Não elejo, ninguém me dá esse direito, mas a poder escolheria a sanidade até ao momento final. 

(Tenho muito mais medo da loucura do que de um toiro bravo. Talvez por isso em tempos, tenha julgado que a trataria por tu. Passou-me depressa, nos bancos da faculdade, em frente ao Professor de Psicopatologia Geral. Ele foi claro e disse: Respeitem a insanidade! Não há palavra que a mate, nem remédio que a extermine. Quando muito, mas quase nunca, há um mundo que a aceita.)

14 comentários:

  1. CF, gostei muito do seu texto!
    É um tema que me toca particularmente... escrevi um comentário longo, que depois de reler apaguei! :(

    Há tanta coisa para entender nesse mundo obscuro das doenças mentais...
    Sabe, penso que a maior parte das pessoas mostra medo das doenças 'fisicas' e não das mentais, porque não as aceita.
    Acham que só as pessoas fracas têm doenças mentais ... há maior burrice que este pensamento?!

    Beijinho,

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  2. Podia ter deixado os seus pensamentos mais extensos sobre o assunto, seriam muito bem vindos. :) O tema é inesgotável sim, e profundamente incompreendido. Talvez por isso, pelo desconhecimento que acarta, merece mesmo todo o respeito, porque a dimensão da dor pode ser infindável. Nada tem a ver com fraqueza, mas a realidade é que muita gente pensa mesmo assim. A doença mental séria, pura e dura, incapacitante, quer seja de ordem demencial ou outra, é um dos maiores desafios da humanidade. E uma das grandes desgraças, também... Aceitá-la como ela é, e melhorar a qualidade de vida de quem dela padece e de quem está perto, deveria ser um caminho. Mas a verdade é que a fuga, o esquecimento e a recusa, ainda continua a ser muito frequentes... :(

    Uma santa Páscoa para si e para os seus, Maria João. E muito obrigada pela sua simpatia.

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  3. Também a mim me tocou este post, CF, porque na verdade fala-se pouco destas coisas, mas o temor que refere é comum a todos nós. Acho eu... Ainda que raramente o verbalizemos, ou não o façamos de todo.

    Boa Páscoa para si, cheia de luz e de coisas boas.
    Beijinho :)

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    1. Sabe Isabel, acho que a doença mental é muitas vezes encarada como uma situação externa e impossível de chegar. As doenças físicas aparecem a qualquer hora, as outras são mais específicas. Para além disso, não são visíveis a olho nu, na maioria das vezes. Desta forma, acabam por ser pouco faladas. O temor pode ser comum a muita gente, mas parece-me sempre menor do que outros que encontro amiúde por aí... Sinto-o real nas pessoas que privam de perto com o problema em questão...

      Uma boa Páscoa para si também, como tudo de bom.
      Um beijinho

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  4. A linha de fronteira é muito ténue. Pelo menos, no entender dos especialistas.
    Ás vezes também tenho muito medo da " completa normalidade", dos rótulos e das análises. De quem sabe o quê e de quem trata, do quê e como.
    A mente humana continua um mistério.
    Fernando Pessoa, se fosse hoje nosso contemporâneo, possivelmente não escreveria nada. Passaria os dias deitado, nos vários divãs e a tomar os vários e indispensáveis drunfos de felicidade. E de anulação da coexistência das suas múltiplas facetas, que é como quem diz: personalidades. Um mundinho superpovoado, que seguramente seria rotulado de imediato, como "perturbação da personalidade".
    Claro que há os varridos de todo. Mas esses, normalmente não são os mais perigosos. Também não sei se são os mais felizes.
    G.S.

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    1. A mente humana é aquele mistério que provavelmente não desvendaremos nunca. Não sei de resto se tal descoberta seria boa, uma vez que vasculharia toda a essência do que somos e tornaria externo tudo quando de mais recôndito nos compõe. É claro que hoje é difícil ser génio. Existiram outros que actualmente seriam apelidados de loucos, como Leonardo da Vinci, por exemplo. O crime de hoje é tabelar o mundo. É balizar o que fazemos no limite da normalidade, é encaixar pessoas em números, é reduzir a diferença a um problema qualquer. É claro que esta massificação é perigosa. Perturba-nos a individualidade, que não é mais do que a nossa identidade ( mas desta "loucura", nem tenho medo, mas depois há as outras que me assustam mesmo. Aquelas que nos roubam essa mesma identidade...).

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  5. CF este seu post é a descrição de um caminho de pedras para quem tem de acompanhar estes doentes. Sempre pedi a Deus que me conservasse a lucidez e não me permitisse que eu fosse um fardo para ninguém. Tenho um familiar a atravessar esse drama e sei avaliar o desgaste que sofrem os que lhe estão próximos.
    Santa Páscoa para si e também para o Paulo com um abraço da Helena

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    1. Conheço bem este género de drama, pois lido com eles diariamente. Conheço do lado profissional e do lado familiar, e são de facto caminhos tortuosos e difíceis de atravessar. Mas é quem os atravessa no corpo que mais me perturba. É quem não sabe quem é, quem não sabe de onde vem, quem não faz a mínima ideia de para onde quer caminhar. O que será que se passa lá dentro? Não sabemos, ninguém sabe. É para mim uma das maiores incógnitas do mundo...

      Muito obrigada Helena, uma Santa Páscoa para si também.

      Um abraço.

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  6. Não concordo inteiramente com essa frase derrotista do seu professor.

    Como sabe tenho um caso na família de esquizofrenia psicótica. Se visse a minha filha, a sua alegria, a sua paz interior, a sua lucidez perante a necessidade da medicação, o seu relacionamento com todos os familiares, o seu espírito metódico e organizado e, ainda, o seu amor desmedido por mim, talvez acreditasse , como eu acredito que há curas para as doenças mentais e recaídas como noutra doença qualquer. Nunca deixarei de falar deste meu caso em público, pois ele pode afastar os fantasmas que muita gente cria, convencidos da sua sanidade mental. Mas todos nós temos um pouco de loucos....não é?
    Não serão muitos os que já sofrem de tais doenças, sem quererem aceitá-las?

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    1. A doença mental é abrangente Virgínia, e pode tocar toda a gente. A sua filha será um caso diagnosticado de sucesso, porque está controlada, mas será que se pode falar em cura? A nós, técnicos de saúde mental, só nos dá satisfação situações como essa, e o que o meu professor pedia era respeito, não enquanto excepção, mas enquanto realidade. Quanto a mim, é a única forma de aceitação possível.

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  7. Confesso que o que li sobre esta doença me pôs de rastos, livros , experiências pessoais, filmes, diários só aumentavam a minha ansiedade e receio. Em 2005, a doença declarou-se tinha a minha filha 25 anos, tinha acabado o mestrado em tradução com notas boas, esteve internada em Inglaterra no Becklin Centre, um dos hospitais melhores que conheço em termos humanos, duma proximidade com os familiares e uma eficiência notávies, sem falar dos custos que foram zero por ela ser utente do NHS. Voltou para Portugal e passou por crises pequenas, mas inquietantes até estabilizar. Em 2010 quiz ir estudar de novo para Inglaterra e esteve muito bem até Abril de 2012. Foi de novo internada no mesmo centro e eu acompanhei todo o processo aqui do Porto, falando com ela todos os dias pelo telefone e indo lá vê-la uma vez apenas em dois meses. A recuperação foi notável, desde junho de 2012 que a medicação é eficaz, a médica dela está satisfeitíssima com os resultados e concordou em que ela voltasse para Inglaterra, como é o seu sonho. Entretanto sempre trabalhou comigo para a Porto Editora e ganhou um montante que lhe permite pagar as suas despesas à vontade.
    É um caso especial talvez porque teve sorte em viver num país civilizado. Não sei o que aconteceria se fosse cá!!
    Rezo para que ela se mantenha assim....é a minha prioridade na vida, apesar de ter outros dois filhos rapazes e tres netos.
    A aceitação da doença só existe na família....a sociedade é tremendamente elitista ....e olha para os doentes mentais como se fossem avis raras de quem convém afastarmo-nos. Senti isso muitas vezes, o paternalismo patético, a comiseração das colegas que tinham sido suas professoras e a conheciam desde pequenina. Tornei-me anti-social e revoltam-me certas atitudes.

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    1. Talvez considere, e porque me movimento no meio, que com todas as limitações que temos também possuímos bons profissionais. E acredito ainda que em termos de postura global, a questão é muito mais alargada do que o nosso pequeno País. Mas percebo a sua "defesa" com um comportamento anti-social. É uma questão de conseguir gerir a situação numa sociedade limitada no campo de visão. Ainda há muito a fazer, como em muitos outros terrenos. Fico feliz que o caso da sua filha seja de sucesso. Desejo-lhe, francamente, que assim se mantenha sempre.

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  8. Virgínia
    Admirei a forma como falou do caso da sua filha. Todos temos as nossas dores e cada um defende-se como é capaz. Aquilo a que chama de anti social é apenas a necessidade de refúgio perante quem não entende a doença da sua filha. Tremendo!
    Fez-me pensar como a ignorância pode ser castradora para os doentes e para os seus familiares e fez-me lembrar os primeiros anos dos infectados com VHF, tratados como párias por quem nada sabia acerca daquele mal.

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  9. Obrigada, Helena. As suas palavras têm um valor especial, dado que é uma Mulher que admiro e que sabe do que falo porque tem experiência de vida.
    Se não fosse este ser um caso melindroso e sensível, gostaria de escrever um livro sobre as minha filha e a relação com uma doença que é proscrita pela maioria das pessoas, que até usam o termo pejorativamente para se referirem a atitudes que nada têm a ver com os sintomas da doença em questão.
    Beijinho

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