© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 9 de maio de 2014

lar

A pertença é anómala por defeito de existência, não pertenço sequer a mim própria mas sim à comunidade, e o afastamento que me permitiria o delírio da liberdade fariam de mim uma exclusão. Talvez por isso considere vazia de conteúdo a vontade de tomar posse de alguém, assumir propriedade de um corpo e de uma mente que não a minha, permanentemente, como se a realidade deixasse margem para abusos deste género fantasioso. A profundeza do amor não se mede em centímetros, apetece-me sempre dizer às dúvidas sobre o assunto. A riqueza da cumplicidade não se avalia em balanças de prato nem em escalas precisas de um manómetro digital, tal como a doçura da presença não se tabela em unidades concretas de horas de colo, ou em beijos distribuídos nas alturas de olhar para a felicidade (sim, por incrível que pareça podemos olhar para a felicidade). Ainda assim gostaria muito de saber da possibilidade de tal averbamento. Gostava de sentir o cheiro de me encostar como um bebé num regaço que me guiaria, numa mão que me direccionaria, numa mente que me organizaria à sua luz e semelhança ( que sossego...). Temo porém que as despesas inerentes ao processo fossem grandes demais. Num ápice chegaria ao vazio interno, não tenho dúvida, e à perca do que mais preciso se consegue com o tempo: a consistência. Não, não há outra coisa maior, ou pelo menos mais pura. É que só a partir dela crescem todas as divindades, incluindo sonhos, Deus, crenças e todos os santos, que moram ou não moram no nosso mundo interior de acordo com o que fazemos dele. Se estes seres, omnipresentes, são ainda assim dependentes, imaginemos o resto. Cresçam por, e para vós, chego a dizer, as pessoas entram quando houver lugar para elas. Cama, mesa, colo harmonioso e roupa lavada, com frescura primaveril. Fora disso, não há onde morar.

(O Paulo tem a mania que deixa o blog sem encanto. Sem charme masculino e sem fotografia. Aposto que já passa e que volta num instante...:))

10 comentários:

  1. Que disparate, CF: eu não deixei o blogue. Quando escrevo «Voltarei um dia sem nome(...)» refiro-me a uma impossibilidade desejada - até já escrevi sobre o arrependimento de ter perdido o meu anonimato. É que sou muito recatado e cioso da minha propriedade privada, jamais (como a enxada da cooperativa e, pelo que escreves, como tu) entregaria o meu corpo à comunidade... :))

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    1. Parece-me que o que descrevo não tem nada a ver com a enxada da cooperativa, mas pronto, está bem... :) Mas olha que com ou sem intenção, quase parecia que te ausentavas, quanto mais não fosse por um tempo. Levando também eu para o campo da brincadeira, e lembrando o fabuloso Herman José, só posso pois dizer-te qualquer coisa como: Adérito filho, volta... É que este blog só no feminino não teria gracinha nenhuma... :)

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  2. Não sei se vos entendo. Começo por saudar uma coisa de que tenho algumas saudades: que se comentem um ao outro... :))
    E fartei-me de rir com o final do comentário do Paulo, delicioso no seu humor algo mordaz ("a enxada da cooperativa" é muito bom!)

    Começo pelo fim. Este é um daqueles posts seus, CF, cujo alcance total eu não sei se consigo atingir. Mas do que entendo, tendo a concordar consigo, no sentido em que por maiores, mais intensos e avassaladores que sejam os sentimentos que nos dominam mantemos a nossa individualidade e não "pertencemos" a ninguém, nem o inverso, o que torna o amor, a cumplicidade e colo todo que temos e que damos melhores ainda.

    Quanto ao post do Paulo, e para além da tranquilidade que dele emana pela junção da fotografia (linda!) e da música, também fiquei com a ideia do abandono do blog, o que seria uma pena, sem dúvida, mas também aposto numa volta, com a lua e música e palavras e tudo (charme masculino incluído). Afinal, dez anos é imenso tempo; e o que é bom deve manter-se...

    Parabéns Paulo, e obrigada por tanto que "Assim na Terra como no Céu" nos tem dado.

    Desculpem ter feito um comentário tão longo; um exagero!

    Beijinho aos dois :)

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    1. O Paulo tem humores assim Isabel, e realmente a enxada da cooperativa é muito bom... :)

      O que eu queria dizer parece-me realmente ser o que percebeu. Que apenas e só a nossa individualidade constitui a base de tudo o que vem depois. E que nunca, jamais em tempo algum, poderemos partir do sentido inverso...

      Um beijinho. Bom fim de semana para si...:)

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  3. Belo texto Carla. Concordo inteiramente com ele!
    Bjo

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    1. Obrigada Helena. Um beijinho para si, e um bom fim de semana.

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  4. Paulo, o que me ri dessa sua incapacidade de entregar o corpo à comunidade.
    Pior é entrega-lo ao manifesto, como se diz na gíria popular...

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    1. Mas dá-lo ao manifesto ainda é um acto de coragem; à manifestação poderá ser de masoquismo, mas à comunidade é que não. :-)

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  5. CF, mas que indiscrição! O Paulo tem manias?! ;)
    Seja como for garanto-vos que este Blog tem MUITO encanto! Pelo menos a mim encanta-me!

    Mais uma vez o seu texto é lindíssimo, CF.
    “…as pessoas entram quando houver lugar para elas.” … é mesmo!

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    1. O Paulo tem a mania, mas como já vimos depois passa... :)) Obrigada Maria João!

      Um beijinho para si.

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