© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Preparado



Houve um tempo em que adormeci. Ninguém está livre deste perigo. Ninguém o consegue prever segundos antes – ao terceiro toque do relógio apago, ó pra mim. Nem segundos, nem horas, nem anos, nem vidas. O momento exacto de adormentar é o mais incerto da nossa existência. Pode ser no sofá, na cama ou no automóvel a duzentos à hora. Houve, dizia, um tempo em que adormeci sem saber que já sonhava num jardim de trevos brancos e cadeiras de madeira tisnada pelo sol dispostas em círculo junto a um riacho de águas doces. No centro, deitado, sentia o eflúvio das quatro folhas pelo nariz e a maciez da turfa negra pelas plantas dos pés descalços. Da ponte de xisto sobre o córrego mencionavas o contrato social de Hobbes: não és um bom selvagem, não estás só, há quem te queira, mau e organizado. Acordei, também há um tempo em que se acorda sem momento preciso, mas continuei a sonhar. Agora num pátio asséptico de betão com cadeiras de ferro. Do meu corpo esguichava sangue espesso e escuro sem odor para o ralo. Quando por fim senti o meu coração, deixei de sonhar. Todo organizado. E preparado.

2 comentários:

  1. Paulo
    Este, é um belíssimo texto. Um clone, em palavras, da foto que o acompanha. Um sonho, um sono de que se acorda a prestações. Um desafio!
    Bjo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nunca devemos adormecer para a Vida, nem sonhar em contramão. Ao lado, só estamos preparados para Ela quando finalmente sentimos o coração.
      Beijos e obrigado :-)

      Eliminar