© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

passadiço

Houve um dia em pensou poder vir a morar no Alentejo. O alpendre era o lugar do inicio do dia, a seara o do almoço, a lareira o do fim da tarde, e a cama, alta, servia de colo para o serão. Não se imaginava no Verão, era sempre no Inverno. O Inverno é aquela altura do ano em que o conforto de um café quente se senta ao lado do frito açucarado, é demasiada gula num corpo só, a única capaz de acalmar com um calor que se precisa muito. O cão andava à solta e o gato aninhava-se sempre aos pés dela. Os tapetes tinham sido bordados noite dentro com fios de lã forte, afinal de contas estaremos no Inverno. O passadiço era frio, só assim se sente o calor interno dos quartos. Era atravessado por um tapete comprido e florido, sempre estendido a preceito. O quarto era um lugar onde a cama ocupava o espaço de uma vida. Nela estendia-se sozinha enquanto no sonho acordava ele. Ele enchia-a de si e jamais permitia que o frio entrasse. Para isso cobri-a com o corpo e uma manta, enquanto os braços se sentiam insuficientes para a  abraçar com tudo o que sentia. Faltava mais braço, faltava mais perna, faltava mais homem. Ela não sonhava nada disso. Sonhava dentro dela uma realidade muito maior. Não lhe faltava coisa nenhuma, nem vontade, nem regaço. A meio da noite levantava-se sempre para espreitar a lua. A lua alumiava-lhe os olhos e fazia-os brilhar de espanto, mas logo depois nascia o sol, ainda mal ela tinha adormecido, entrava sem bater e trazia-a de volta. O regresso era sempre conturbado, mas ainda assim saía e apanhava o ar fresco da manhã. Nunca deixou que o dia lhe matasse a noite, mesmo quando o sol, insistente e omnipresente, lhe arrefecia o entusiasmo. Afinal de contas, mais logo, há café quente outra vez. E frito, e manta, e sonho, e ele. O corredor frio é um pormenor insistente, uma vez que o monte, perdido, continua a palpitar.

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