Há muito tempo que ela lhe admirava a cortesia. A presença na hora marcada, a palavra exacta no sítio certo, o discurso escorreito de quem sabe o que diz. Um dia questionou-o sobre o assunto, seria amabilidade ou pretensão?
- Na vida, pouco faremos a troco de nada. Comemos para alimentar o corpo, amamos para alimentar o ego, procriamos para prolongar a espécie, choramos para limpar o espírito. E por aí em diante.
- Certo, acena ela com a cabeça. E a minha resposta, em que ficamos então?
- Sou cortês porque gosto de mim próprio, e não aguentaria vê-la triste. Daí a possibilidade de convergirem contrários, ou seja, dou-lhe a si e recebo em troca o que preciso. Não restem dúvidas, é amabilidade e pretensão. Sou delicado e conquisto o seu apreço. Não conheço outra forma de evolução.
(Diálogo longínquo e eloquente de um homem de boina e gravata, colocada no preceito da regra. Escutei-o clandestina, como a tantos outros. A distracção dos adultos cedo me ensinou coisas demais.)
Caso contrário, seria um profeta e usaria uma batina em vez de gravata e boina. Só discordo do «amamos para alimentar o ego», embora perceba onde ele quer chegar... :)
ResponderEliminarVou dissertar um pouco sobre os meandros mais íntimos da psicanálise... :) Amamos para alimentar o ego, sim. O ego é a primeira das nossas instância, ligada ao id, um lugar ainda mais obscuro e incompreendido para todo o sempre pela humanidade. Por vergonha, por excesso de socialização, por dificuldade, jamais ousaremos deixá-lo a nu, aos olhos do mundo. E essa limitação imposta não nos deixa compreendê-lo, apenas nos permite, para nós mesmos e com base no que sentimos, concluir algumas coisas, também elas limitadas pelo que sabemos ser certo e errado. Em última instância, acho até que sentimos e até podemos saber. Mas guardamos para nós, porque receamos a análise externa, sempre castradora e punitiva. Por outro lado, e se ousarmos escutar o nosso id, encontramos um mundo perdido, eventualmente uma caixa de pandora. Onde amor e sofrimento podem verdadeiramente estar ligados, e onde os nossos instintos mais primários se assumem com um carácter fulminante...
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