© Paulo Abreu e Lima

domingo, 15 de fevereiro de 2015

abusos

A cada dia que passa fico mais feliz de não ter seguido o conselho paterno. Gerir empresas era algo que jamais me satisfaria, não aprecio o rigor do número, o cálculo da tabela, a rigidez da fórmula, o imperativo da regra. Se o mundo precisa ou não de tudo isto para girar é lá com ele, estou fora, situo-me do lado de dentro das pessoas, onde tudo pode acontecer. Daí até perceber alguma coisa vai uma distância feroz. Vai um mundo, uma eternidade, uns anos luz que se estendem indefinidamente na direcção do infinito, julgo ser a frustração que me mobiliza até ao dia em que a desilusão me mate a fome ou a saciedade me atinja, muito longe do alvo construído. Ainda assim por vezes fico contrariada. Enjoa-me a inflexibilidade colada à pele, a vontade histérica de rotular, a abjecta vanglória dos mexericos que sabem de cor e salteado a inquietação da cidade. Tal como me perturba o abuso com que me lêem o acting-out que nada mais é do que um excesso libertado, pela busca do equilíbrio pretendido. Aprender a ler o outro talvez seja o livro da minha vida. Desmanchar-lhe as defesas, repassar-lhe as vísceras, rasgar-lhe os caminhos que vão ao encontro da génese do comportamento, coser-lhe o peito e recuperá-lo outra vez. Não me julguem à luz da curiosidade mórbida pela vida alheia, estarão enganados. Mas podem bem encarar-me como uma insatisfeita que teima em chegar ao insight perfeito, passando por onde for preciso. Daqui até lá, só vos peço,  não me fujam do caminho. Jamais me encontraria em qualquer outro lugar.

12 comentários:

  1. Compreendo muito bem essa necessidade de "aliviar" os outros dos seu fardos ou angústias. Deve ser uma profissão que traz realização pessoal. Desde que conheci a média psiquiatra da minha filha por quem tenho uma verdadeira adoração que abri os olhos para a importância de pessoas como vós, que dedicam toda uma vida a ouvir os outros e a tentar que eles se conheçam a si próprios. Bem hajam!

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    1. Realiza sim Virgínia, com duplo sentido. De um lado a ajuda ao outro, do outro o nosso próprio conhecimento... Acho que não saberia mesmo fazer outra coisa... :)

      Um beijinho e obrigada

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    2. Desculpe as gralhas....médica.

      No caso da psiquiatria ainda é mais difícil lidar com outros egos e ser capaz de aplicar os conhecimentos no risco e na falha. Verifiquei que o amor e a empatai são mesmo essenciais para a compreensão da doença ou condição em que os pacientes se encontram. E não é raro eles virarem-se contra quem quer ajudá-los. Felizmente não foi nunca o meu caso.

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    3. Não é raro não, Virgínia. A consciência da necessidade de ajuda é controversa, e se por um lado há a humildade, por outro há sempre uma réstia de orgulho...

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  2. Achei muito interessante a sua reflexão. A aprendizagem da leitura do outro é realmente um caminho árduo, exigente e sujeito a (des)enganos vários. É um caminho sem destino, porque é inalcançável. Mas é tão aliciante que rumamos vezes sem conta ao desconhecido, movidos pelo amor, pela curiosidade e por uma força sublime que nos transcende. O que dificulta ainda mais este intento é que não partimos sempre do mesmo sítio, porque não somos todos os dias iguais, porque não ficamos imutáveis à passagem do tempo e às relações que vamos tendo. Por isso, penso que a leitura que fazemos do outro é uma construção sempre inacabada de partes de nós, de partes do outro e das circunstâncias em que nos encontramos.

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    1. É isso Miss Smile. É esse caminho inacabado, nosso e do outro, que tanto me fascina. Para além da infinidade de pessoas que encontramos, todas diferentes, em número igual ao da existência humana. Cada um de nós é um livro perfeito, no sentido da possibilidade e do progresso. Um desafio... :)

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  3. AI CF, li este post e o que me veio à cabeça foram perguntas, mais perguntas, mais perguntas ... depois parei um bocadinho e pensei :"Devo estar a precisar de pedir ajuda a um psiquiatra!" :)
    Eu sou dos números, da lógica, tenho uma dificuldade imensa nessa procura do outro e procura do eu! A vida tem-me forçado a essa procura e para mim é uma luta muito difícil.
    O que me apetece mesmo, depois de reler o seu post, é dizer que sinto alguma inveja de quem consegue escrever, sentir e fazer o que a CF descreve nesta frase :
    ” Desmanchar-lhe as defesas, repassar-lhe as vísceras, rasgar-lhe os caminhos que vão ao encontro da génese do comportamento, coser-lhe o peito e recuperá-lo outra vez”
    Mas somos todos diferentes, não é?!
    Beijinho CF

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    1. É. E ainda bem Maria João. Imagine o mundo recheado de pessoas como eu, e sem pessoas amantes da ordem. Ó, que desordem total, onde ninguém se encontraria... :)
      A procura do nosso eu é uma necessidade existência transversal ao mundo. Eu, pela minha parte, encontro-me permanentemente na frase que transcreve. Mas lá está, não somos todos iguais. E nem nos encontramos todos da mesma forma... :)

      Um beijinho para si também.

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    2. É isso mesmo.
      Eu para me encontrar preciso de isolamento, preciso da imensão do mar, da profundidade de uma montanha. A CF luta, procura! Eu não sou capaz dessa luta!
      Pessoas como a CF são bem mais fortes do que pessoas como eu!
      Mas sim, somos todos necessários a este mundo! :)

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    3. Ai Maria João, de forma nenhuma.... Forte é a natureza que gosta de observar... :) Nós lutamos todos por compreendê-la...

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  4. Cara CF
    Belo texto. Na forma e no conteúdo.
    Caminhar tentando conhecer o outro e através dele poder ir-se conhecendo a si próprio é uma rota em que deviamos todos estar empenhados. Só ganharíamos com isso!

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    1. Concordo em absoluto, Helena. Diria até que não há outro caminho, para nos conhecermos de uma forma mais plena...

      Muito obrigada. Um beijinho para si.

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