© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 10 de abril de 2015

cadeira vazia

Há muito que perdi a tolerância para quem me diz com pouco engenho, entre um sorriso arriscado e uma lábia exagerada, que também tem muito de psicólogo. Como se a minha profissão, a ciência e o protocolo de intervenção, tivesse nascido comigo, e a dedicação com que me entrego a ela fosse uma mera perda de tempo, porque bem vistas as coisas está ao alcance de qualquer pessoa que consiga ouvir alguém durante dez minutos, proferir duas palavras e sentir-se repleto de capacidades de intervenção. Este facto já me causou menos aborrecimento, nos tempos em que a minha paciência era uma grandeza quase maior do que a sapiência desta gente. Hoje em dia, com a consciência plena e completa da minha absoluta ignorância, encontro-me totalmente intolerante para este tipo de afirmações obsoletas. Sendo assim, e fazendo uso de uma técnica terapêutica bem conhecida, não sei se só nossa, se do público em geral, vou aproveitar este espaço para dar lugar à cadeira vazia, aquela a quem eu direi o que me aprouver no sentido de destilar o que acumulo: caras pessoas que se julgam capazes de entender e intervir na mente alheia, fiquem-se pela vossa e já terão trabalho. Se há coisa que nunca compreenderemos é a psique, porventura muita mais complexa do que os planetas conhecíveis por intermédio da tecnologia que a nossa inteligência, sabe-se lá como, produz. Mesmo quem se debruça sobre ela com muita dedicação tem sérias dificuldades, ainda que estude, leia, releia, experimente e execute, há falhas constantes e erros maiores. Terapia, a técnica que aplicamos, não é uma mera conversa. Para essas existem os amigos, os conhecidos, a senhora do café que todos os dias se senta ao nosso lado, a empregada de balcão que nos serve o cafézinho, o advogado que nos tratou do divórcio, a padeira que nos vende o pão. Nós não conversamos. Nós quando trabalhamos escutamos, enquadramos, acomodamos, tudo à luz de modelos que perderam décadas de existência com o objectivo de aperfeiçoarem a acção. Não somos meros escutas de palavra fácil na ponta da língua. Não estamos sempre certos, não temos fórmulas matemáticas, somos ambiciosos nas nossas crenças, e queremos aprender continuamente aquilo que sabemos nunca chegar a conhecer. E por isso falhamos, muitas vezes, apesar da ciência. Posto isto, remato, por muita conversa, muita audição e muita compreensão, quem não sabe realmente do assunto tem tanto de psicólogo quanto eu tenho de freira. E olhem que eu sei rezar. E bem.

10 comentários:

  1. Em quase toas as profissões sucede o mesmo. As pessoas sabem mais de doenças que os médicos, mais de leis que os advogados, mais de construção que os engenheiros, mais de ensino que os professores, mais de futebol que os treinadores, etc. Acho que é a natureza humana. A maioria das vezes as pessoas estão erradas, às vezes acertam, mas não é nada de mais. Luísa

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    1. As pessoas sabem sempre muito do que não lhes pertence, digo eu... É um problema abrangente, com certeza...

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  2. Estava a precisar de sorrir um bocadinho :)
    Comigo tem sido o processo contrário. Irritava-me, tentava explicar, mas agora aceno com a cabeça e digo que sim.

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    1. Estou a precisar de conseguir essa proeza... :))

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  3. É a globalização do saber minha cara. O acesso à informação, ainda que errada, dá uma sensação de poder que antes só poderia ser sentida pelo médico.
    Hoje em dia está tudo escarrapachado na internet, fazem-se bombas, cesarianas, e toda uma panóplia de coisas que antes eram só do domínio das profissões.
    Não é mau de todo as pessoas terem acesso à informação, o problema é a forma com apreendem o que lêem. Sem bases e sem conhecimentos podem inclusive colocar a vida em perigo.
    Eu tenho muito respeito pelas profissões e pelos profissionais, mas isso sou eu que sou antiga.
    Um abraço.

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    1. É provável que influencie, sim. São um risco essas informações nas mãos erradas. Para além do perigo real se não as soubermos ler, há o de nos julgarmos omnipotentes... Outro, quase tão grande quanto o primeiro...
      Outro abraço.

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  4. É por causa de pessoas assim que cada vez gosto mais de dizer " nao sei". E ver aquelas caras escandalizadas a olhar para mim como se eu fosse uma ignorante. Ahah e nao sou?! Sou.
    Fujo o mais possivel de quem sabe tudo. Nao ha pachorra! ;)
    Beijinho

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    1. São um crime, não são?... :)

      Beijinho, bom fim de semana.

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