© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 16 de junho de 2015

alegria

Cada vez mais falo da morte com o mesmo amor que tenho à vida. Olho ao redor de mim e encontro olhos incrédulos, capazes de me retalhar de fora para dentro, apostados em catalogar-me de negra, de bruxa, de mórbida, de infeliz. Uso o mesmo truque das criancinhas quando lhe apontam os dedos à irreverência, e aumento o discurso. Sou capaz de detalhar a dita porque já a olhei de frente várias vezes, conheço-lhe a cor, o cheiro, o som, o poder. Hoje dedico-me essencialmente a curar as feridas que por cá deixa. Acolho de braços abertos tristezas, lágrimas, desesperos, desejos indómitos de acabar com tudo e começar de novo, não interessa onde, nada pode ser pior do que o mundo quando se perdeu parte de nós. Ontem, por exemplo, chorei por alguém que nunca vi, ao lado de alguém que não se consegue ver. Há muito tempo que sei que a maldição da morte é tornar pessoas vivas invisíveis para elas próprias. As pessoas que sobrevivem aos outros procuram-se todos os dias por entre os farrapos da perda, mergulham fundo nos territórios não vividos, colam-se às memórias e não sabem onde se reencontrar. Percebo-as na perfeição. Respeito-as até às maiores profundezas do meu ser. Faço o melhor que sei nesse campo e fico aquém, é injusto, existem tarefas no mundo impossíveis de completar. Mas quando fecho a porta respiro fundo e sou eu outra vez, um nada mais crescida, um pouco mais consciente, muito sossegada, por sentir que estive ali. Engraçado como ainda julgam que a psicologia é técnica, quando na verdade é relação. Curioso como se julgam alegres os ignorantes, quando na realidade não sabem se o são. Inacreditável, como se enganam os felizes por catálogo. Formidável, como este contentamento aplaudido me parece tão miserável.

6 comentários:

  1. E enquanto leio o seu texto não consigo evitar sentir uma profunda comoção e um grande sentimento de admiração. Eu sei que a CF vê as pessoas inteiras mesmo quando a estas lhes falta o centro, um bocado vital, a onda que as sustentava como um mar. Quando a realidade é abalada pela morte, viver torna-se num ato de fé. E nem todos conseguem superar esta amputação, esta falta de referência, quando a própria história fica para sempre entrelaçada com a morte. Morre-se sem estar morrendo.

    Um abraço abraçado, querida CF

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    1. Não é simples aceitar o luto tal e qual ele é. A sociedade tende a catalogar e tabelar tempos, e muitas vezes esquece-se que não é fácil para quem perde um pedaço de história, prosseguir. Há muito que me apaixonei pelo tema, e quanto mais o descubro, mais me apetece olhá-lo de frente. É possível voltar a viver, mesmo quando parece que não, acredite. Fazer parte desse processo é hoje, quiçá numa necessidade narcísica, uma parte importante do meu percurso profissional, que faço de corpo e alma...

      Um abraço para si também, Miss Smile :) Obrigada pela simpatia...

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  2. Chama-se consciencia das coisas. 😉
    Mais um texto belissimo.
    Bj CF

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    1. Isso. E há muita gente que prefere estar longe dela, porque nem sempre é simpática de se sentir...

      Obrigada Maria João :) Um beijinho para si...

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  3. Eu venho aqui precisamente para a ler e ficar calada, porque na maior parte das vezes, senão todas as vezes, não fica nada por dizer.

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    1. As suas palavras são sempre bem vindas Uva Passa. Nunca se diz tudo... :)

      Bom fim-de-semana. Obrigada pela simpatia...

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