© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 16 de julho de 2015

rainha

Engulo um caldo verde frio que me escorrega depressa pelas goelas com fome. Não há nada para me distrair o espírito sem ser um correio da manhã, que repousa sossegado no banco ao meu lado. Não simpatizo com o dito, mas pego nele como quem pega numa solução de ultima hora para uma necessidade urgente, exactamente a mesma forma como agarro numa bolacha de água e sal em maré de pouca fartura. Vou folheando o jornal e fico ligeiramente inquieta. Uma criança morreu esmagada por uma porta de ferro. Uma outra foi vendida pelos pais, com doze anos, para favores domésticos e sexuais. Não arrisco avançar, as couves começaram a prender-se na minha garganta, a água não resolvia, o pão engrossava-se dentro da minha boca. Não tenho nada contra o jornal mais lido do país. Não é por ele que lhe fujo a ele próprio, não faz mais do que retratar a realidade com palavras pouco cuidadas, num mundo muito pouco delicado, logo, condizente. Fujo dele porque não gosto de ler a loucura e a desgraça do mundo, de forma cruel. Tudo quanto de menos bom existe merece uma elevadíssima dignidade na abordagem. Uma criança que é vendida pelos próprios pais, que é abusada e espancada, merece ser resguardada. E se não for, e se dela quisermos saber notícias, merece ser falada de forma sublime e preocupada. Qualquer coisa que até pode ser simples, como: menina foi uma vítima, e o mundo tem por ora a obrigação de curá-la. Porque o que interessa neste caso não é o bastão que a polícia apreendeu e que durante anos a espancou, e muito menos ainda o casal que a molestou. O que interessa neste caso é a solução para ela, num mundo melhor e muito protector. Ela não é, nunca mais será uma simples menina. Deveria, no mínimo, ser uma rainha.

10 comentários:

  1. Há meninas que crescem demasiado cedo para a dor e que o mundo não cuida o suficiente, não mima, não eleva.

    Boa noite, CF.

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    1. Quase nunca cuida. Quase nunca...

      Boa noite, Maria

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  2. Não podia estar mais de acordo consigo. Fujo de jornais e de telejornais que abordam certas notícias de forma tão cruel. As vítimas não merecem ser tratadas com tamanha falta de dignidade. Foram maltratadas às mãos dos seus agressores e depois, são-no uma segunda vez por razões sensacionalistas e de audiências. Sinto exatamente o mesmo que a CF tão bem descreveu.

    Um beijinho

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    1. É terrível Miss Smile. Choca-me esta necessidade de sensacionalismo. Eu, que trabalho na área da saúde mental, não consigo encontrar um dado válido que me justifique isto...

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  3. Os reporteres se pudessem entravam pelas casas adentro e entrevistavam a rapariga abusada, a mãe que deitou o filho ao lixo, os rapazes que espancaram a colega, etc. Esmiuçavam até ao tutano a miséria, a infâmia , o surreal.
    E o que mais me choca é que todas estas notícias são dadas a horas em que muitas crianças agora de férias estão em casa de comando na mão.

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    1. Estão em todo o lado, Virgínia. Jornais, telejornais, e até nas bocas faladoras das mesas dos cafés. Dá ideia de que quanto mais sangue melhor. A natureza humana é realmente assustadora...

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  4. Já nem consigo ler essas notícias e às vezes pergunto-me se é cobardia, se prefiro fingir que essas coisas não acontecem... Só os títulos deixam-me agoniada.

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    1. Eu leio as que me chegam com cuidado jornalístico, mesmo que me custem ler... As outras, não suporto. Por vezes, chego a suspeitar da sua veracidade...

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  5. Já houve tempo em que se escondia. Os abusadores ficavam impunes. A igreja calava. Os vizinhos calavam.
    A Marie Claire era uma solução para as senhoras impressionáveis...
    Creio que quanto mais se falar abertamente no assunto, sem expor, obviamente, os menores, mais se contribui para as pessoas denunciarem estas situações, antes que seja tarde demais. Muitas vezes, infelizmente é tarde demais.

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    1. George Sand, é sempre tarde demais para o que aconteceu, eventualmente serve para efeito punitivo e preventivo em relação ao futuro, o que já é bom... Não sou a favor da falta de informação, reconheço-lhe a importância. Só não tenho paciência para o sensacionalismo, que de resto, tomou de assalto a sociedade e as profissões que se prestam ao fenómeno. Perde-se o respeito e a dignidade, e as consequência são negativas...

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