© Paulo Abreu e Lima

domingo, 11 de outubro de 2015

tesouro

O tesouro é um jogo onde cada pessoa de um grupo terá de dizer algo bom sobre cada elemento. Foi sem esforço que salientei uma ou duas coisas de cada membro, há a que me transmite paz, a que me dá colo, a que esbanja ternura, a enérgica, a que me faz rir... Assumo o papel sem questões de maior, teço as considerações necessárias por cada sentir que atribuo, sinto um sorriso do outro lado, uma incredulidade, um sou mesmo assim, e vá lá saber-se fiquei para o fim. Olhei para a folha assinada pelos intervenientes e senti-me estranha. Maternal é coisa que eu não sabia ser visível. Esforço-me por cuidar com o cuidado genuíno, mas a transparência parece ser de carácter maior. Inspirar confiança agradou-me demais, no sentido pessoal e profissional. Não há neste mundo grandeza maior de ser conseguida, sem prova provada de merecimento real. A humildade surgiu lá para o meio, cercada por simpatia, serenidade, postura forte e sólida, sinceridade. Olhei para aquilo tudo e não tive tempo de ficar com uma ponta de orgulho, antes mesmo de qualquer chance desabou-me o mundo aos pés, já me tinham dito há muito que as nossas questão pessoais se enviesam no circuito. Na realidade falar do que eu sinto que sou, em confronto com o que dizem de mim, é de uma ambivalência de carácter maior. A tendência natural foi de alguma renúncia. A vontade era explicar a todos, por A mais B, que em algumas questões estão redondamente enganados. Postura forte, por exemplo, estou longe de a ter, muito embora a possa transparecer numa defesa edificada por entre as malhas do percurso, não suporto colos desajeitados e eventualmente desproporcionados. Não obstante, trouxe a folha para casa. Era uma regra comum ao jogo da fortuna dourada, e desde aí até muito depois reli-a inúmeras vezes. Sei o que é isto, é o pecado profissional da dádiva, e a carência da retribuição subsequente, mas seguramente abrangente. É comum a todos, descobri hoje, e fiquei verdadeiramente mais sossegada. É que eu não suporto narcisistas levados ao extremo, e mirrava-me de castigo sozinha se me enquadrasse no território.  

8 comentários:

  1. Nem sempre é fácil gerir a descontinuidade entre o que pensamos que somos e o que o espelho que são os outros nos devolve diariamente - as identidades que pensamos que temos e as que nos atribuem. Do lado de cá, neste vasto mundo virtual, tão longe e tão perto que estamos uns dos outros, também a sinto com uma postura forte e sólida. Pelo menos, foi assim que a construi nas entrelinhas do que vou lendo. E, sabe, gosto muito de si. Acho que já o disse, mas eu sou daquelas pessoas que gostam de jogar o jogo do tesouro todos os dias :)

    Um beijinho e um domingo feliz :)

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    1. Miss Smile, você é de uma doçura natural enrome, e de uma simpatia tremenda. Também é o que leio nas entrelinhas do que escreve. :) Agradeço-lhe as suas palavras, e acredite, jogar o jogo do tesouro deveria constituir tarefa frequente nos bancos das nossas escolas. E o inverso, claro, também poderia esporadicamente ser pertinente. Obriga-nos a pensar e a encaixar...

      Um bom Domingo para si também. :)

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  2. CF
    Ontem por mero acidente ouvi a Marta Gautier falar de uma nova forma de encarar a linguagem do corpo como elemento de psicanálise. E, agora ao ler este seu texto, lembrei-me do que ouvi ontem. Embora para quem fez análise "pós froidiana" como eu, a coisa não fosse completamente clara.
    Aqui e hoje, a velha luta parece ser entre a identidade que "julgamos ser a nossa", aquela que verdadeiramente será a nossa e a que os ouros nos atrubuem. O que "seremos mesmo" é obra de uma vida e eu creio perceber muito bem o seu sossego!
    Bjo

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    1. O tema é interessantíssimo, pelo menos assim o considero... :) A nossa imagem de nós mesmos baseia-se num conjunto de crenças, sentimentos, reflexos, retribuições, etc. A imagem que os outros têm de nós é influenciada pelas próprias crenças, pelos próprios sentimentos, reflexos e retribuições. Elevando ao expoente máximo, dado que gosto de exagerar e perceber o resultado, concluo que eu sou eu e cada pessoa que me cerca... Diga-me se não é fantástica esta grandeza?!

      Um beijinho para si.

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    1. :)

      (A nossa natureza é uma coisa maravilhosa...)

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  4. Devíamos jogar esse jogo de vez em quando com amigos, familia, colegas de trabalho, com quem faz parte da nossa vida.
    Se soubesse-mos ouvir e sentir o que os outros sentem sobre nós eramos pessoas mais equilibradas e mais felizes.
    Um beijinho CF
    Os seus textos são de uma simplicidade desconcertante. Gosto muito! ( acho que já lhe tinha dito! :) )

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    1. Devíamos pois, Maria João. Dar nome ao que sentimos uns pelos outros é um caminho desconcertante, mas importante... Vale a pena experimentar, acredite...

      Um beijinho para si. É sempre um amor, deixe-me que lhe diga... :)

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