© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A segunda pedra

Acredito que todos os estados de alma do ser humano podem e devem ser úteis, dos melhores aos mais medonhos, dos piores aos mais exigentes. Um dia, uma pessoa muito querida perguntou-me se não sentia ciúmes. Respondi que sim, mas depois de digeridos, usava-os nas minhas fantasias mais lascivas, obtendo do efeito maior prazer. Bizarro? Não, bizarro seria alimentá-los e fazer recrudescer poeira que me privasse de prosseguir.
 
 
Ora, também no sofrimento – ou principalmente com ele – devemos aprender. Distinguir a dor do sofrimento é porventura o primeiro passo. A primeira pode ser inevitável, mas o segundo é uma opção; pela singela diferença em que a dor vem de fora e o sofrimento de dentro. Uma picada de agulha pela manhã implica desconforto, mas não necessariamente mal-estar durante todo o dia, ou seja, para além de opção e ao contrário da dor que é episódica, o sofrimento é um processo que se prolonga no tempo e que cabe a cada um de nós dar a mais adequada e sábia tramitação.
 
 
O segundo consiste na aprendizagem a que ele nos pode submeter. Como diz Séneca, "cobarde é aquele que morre por medo de sofrer, e idiota aquele que vive para sofrer". Saber retirar do sofrimento ensinamentos, mais do que uma questão de bom senso e sapiência, é um objecto de superior forma de saber viver (às vezes sobreviver) da melhor maneira possível. Consiste num manancial de traquejo e arcaboiço que seguramente nos visitará e municiará no futuro. E, como em qualquer aluno, cada um ao seu ritmo e destreza, com passagens e chumbos.
 
 
Por último, a verdade. Sofrer depura-nos a alma, faz emergir o mais verdadeiro que cabe em nós. Ninguém se conhece na plenitude, mas na essência do que somos pela privação do prazer. A felicidade? Com essa não aprendemos nada. Pela simples razão que esta não passa de um resultado, jamais de um prelúdio. Muitas vezes dizemos que  "naquele tempo éramos tão felizes e não sabíamos…". Éramos nada mais do que uns desprezíveis idiotas. Só se sabe o que é bom depois de experimentar o que foi mau. Só se pode provar a felicidade depois de se ter ingerido algumas boas doses de sofrimento. Só se é depois de se ter sido.

12 comentários:

  1. Lindo texto e tão verdadeiro! Somos, mais ou menos, capazes de suportar o sofrimento, se o encararmos, de cada vez que nos bate à porta, não como uma tragédia, mas como algo com o qual podemos aprender e consequentemente crescer. É certo que a dor é inevitável, mas o sofrimento daí decorrente, não obstante, ser opcional, faz também parte do percurso de cada um e deve ser encarado o tempo que for necessário, pois só assim se retira dele a aprendizagem necessária. Caberá a cada um, dentro das suas capacidades, demorar-se o que necessita, com a certeza, porém, de que, mesmo podendo chumbar o teste, um dia o passará com a distinção que almejou. E como dizia Alphonse Karr, "O coração precisa encher-se de alegrias ou de dores; umas e outras o alimentam; o que não pode suportar é o vazio".

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    1. Completamente de acordo, Esmy.
      Só me resta agradecer.

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  2. Paulo, identifico-me totalmente com o texto que escreveu. Somos realmente mais completos quando sofremos. E só encontrando em nós o que de mais verdadeiro temos é que podemos reconhecê-lo nos outros. Se for utilizado como aprendizagem, o sofrimento humaniza-nos e confere mais dignidade à nossa existência. Com ele, aprendemos a apreciar e a valorizar mais sabiamente a felicidade, independentemente da definição que cada um de nós tem para ela. A consciência dá-se sempre por constaste e, claro, com uma boa dose de solidão.

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  3. Paulo, amei o texto. Simples, claro, objetivo e verdadeiro.
    Crescemos com o sofrimento e saímos dele muito melhores.
    Beijinho
    Lucia

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    1. Olá, Lucia, tudo bem com você?
      Bom trabalho,
      Beijinho

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  4. Desde que nascemos que vivemos nessa dicotomia. Dor e sofrimento, prazer e alegria. É parte natural da nossa vida.
    E aprendemos? Claro!
    Mas há dores que nenhuma aprendizagem compensa. Eu dispensava bem algumas delas. Saberia muito bem ser feliz sem o que aprendi com alguns sofrimentos que tive que gerir.

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    1. Tendo a concordar, Maria João. Mas a Maria João de hoje é, porventura, muito mais rica do que outrora.
      Tudo vale a pena... e, pelo caminho, acontece sempre o imponderável, a dor que se julga impossível de ultrapassar ou, mesmo, que nunca passará.
      Beijinho, Maria João.

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  5. Não sei se aprendi muito com o sofrimento. Devo ter crescido e começado a apreciar mais as coisas boas e simples da vida. Mas dispensava o sofrimento, sobretudo aquele que se torna numa ansiedade, receio, incerteza e permanece latente mesmo nos momentos de alegada felicidade.
    Não quero sofrer mais, sobretudo quando se trata dos filhos. Aguento o sofrimento físico e que me toca só a mim. Mas sofrer a angústia e o terror de perder filhos, NÂO! É que não o conseguiria ultrapassar mesmo!

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    1. Não escrevi pensando no sofrimento pelos nossos queridos, até porque isso nem é sofrimento, é dor e da rija. Como disse, dor vem de fora, não se controla, não podemos fazer nada; quando muito, apenas aceitá-la. Já no nosso processo de crescimento, sofre-se (e bem). E é deste processo que devemos retirar ensinamentos...

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  6. Não consigo distinguir bem o sofrimento interior que nos faz crescer e a tal dor que vem de fora. Sofro sempre pelos outros, sobretudo pelos filhos e netos, já que os meus pais já não andam cá. Felizmente na minha idade já fazemos um pouco a vida que queremos para compensar todas as frustrações e esse tal sofrimento. E há compensações como ir à CdM ouvir o Magnificat de Bach e ainda o Stille Nacht cantado pelo meu neto e outros alunos do Colégio Alemão. Em boa hora o meu filho me arranco de casa. Bjo

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    1. Isso é o que chama sofrer por antecipação, ou seja, ansiedade. Mas o processo da ansiedade, desde que não nos bloqueie, e seja proporcional, não é defeito, convém apenas ser "educado" por forma a não infligir sofrimento. Usufrua dos seus netos e filhos, mas nunca se esqueça de si! Bjo

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