© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Seu Jorge

Encostado ao balcão da clínica, esperava que me processassem o recibo. Do lado de lá, uma noviça sentada ao lado da Dona Manuela, essa sim, mulher expedita de verbo fácil ao telefone enquanto tecla frenética marcações, olhava para mim, depois para ela, e corava, não sabia emitir o diabo do recibo. É só um momento, repetia. Do lado de cá, senti uma mão vinda de baixo até ao meu ombro. Virei-me. Era o excelso professor, o eminente comentador, o admirável constitucionalista.
Oh, senhor professor, lembra-se de mim?
– Claro, foi o único aluno que solicitei para sair da minha sala de aula – aclarou.
Oh, senhor professor, mas isso foi há vinte e cinco anos e picos.
– Foi, mas sabe, eu já estou nos setenta, vivo mais de recordações do que deste triste presente.
 Enquanto a noviça não recebia uma peva de atenção da expedita Dona Manuela, saímos do balcão e encetámos amena cavaqueira.
Isto está tudo muito mau, não estou nada esperançoso neste pobre país. Eu, professor catedrático há quase quarenta anos, estou a receber uma mísera pensão, mal chega a dois mil euros, cada vez recebo menos direitos de autor, a minha editora está em pré-falência, tenho de continuar a trabalhar nas duas universidades – desabafava, pesaroso, enquanto eu assentia com um ar compreensivo Sabe qual foi o maior de todos os problemas? Termos entrado para o euro sem harmonização fiscal, perdemos soberania ao deixarmos de utilizar o instrumento cambial – aquiesci, sem concordar em absoluto, mas deixei-o prosseguir, sou um excelso ouvinte, eminente conversador e admirável espectador. Passámos por Itália, por África, pelo Daesh, pelo Mundo. No final, felicitou-me – precisamos de muitas pessoas como o dr., pessoas que criam emprego, mostram lá fora como somos bons e podemos almejar por um melhor futuro. Com a cara e a roupa pulverizados de perdigotos, voltei ao balcão para obter o recibo. A moça, agora alva, pediu-me desculpas pelo incómodo e saí da clínica com mais três ovações reverentes do prestigiado professor constitucionalista, ainda na sala de espera. A caminho de casa cogitei a razão pela qual me tinha pedido para sair da dita aula. Lembrei-me. Dissera em voz alta ao Jorge que com esta auspiciosa Constituição acabaríamos todos decepcionados. E, talvez por isso, e um pouquinho de presunção, Miranda nunca se esqueceu de mim.

2 comentários:

  1. Nunca convém ser lúcido "avant la lettre"!! Mas o Miranda ( que bem conheço) também deveria ter estômago para responder à provocação!!

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    1. Isto de ter razão antes do tempo é um erro tremendo :) Quanto ao JM, ele nunca foi conhecido por ter estômago - por outras coisas, talvez :)

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