© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 17 de maio de 2016

Taking a trip down memory lane


Já havia sentido antes. O desejo de evasão não é um espaço de necessidade, é mais do que isso, é não soçobrar à privação de liberdade, convocando a deriva em puro estado de perdição. Uma pessoa que opta por perder-se anseia o reencontro da sua essência, quantas vezes soterrada pelas vicissitudes da sufocante orla das não-decisões. Creio que é um processo interior ao qual todos nos devemos submeter pelo menos uma vez na vida, sob pena desta nos passar ao lado, e o azedume, cheiro tóxico que envenena inspirações, nos se alastrar pelos vasos capilares até às células mais empedernidas.

Faz quase um ano que decidi fazer uma viagem à linha do equador, S. Tomé e Príncipe. Face à resistência que senti dos meus mais próximos e até dos outros, o verbo não é o mais acertado. Não foi uma viagem qualquer como outras que fiz sozinho em trabalho ao longo da minha vida por este mundo fora. Ousei, agora sim o verbo correcto, pensar apenas em mim próprio e fazer férias sozinho. Perder-me na selva virgem de serpentes negras, por entre as gentes afáveis com a verdade na cara e por entre alguns, pouquíssimos, turistas – famílias e casais em lua-de-mel em busca do paraíso.

Ousar pensar apenas em nós próprios é um terreno delicado, pleno de nuances, onde a liberdade, atrevida, pode ser epitetada de irresponsável ou, até mesmo, de egoísta. Contudo, à altura, ninguém se apercebeu do meu estado de necessidade. Perdido e sozinho já eu estava há muito; preso e camuflado, também. Diz-se aos sete ventos que não adianta fugir dos problemas, pois eles nos acompanham para onde quer que vamos. Também não digo o contrário, mas a evasão não é fugir, é a árdua arte de separação entre o que é e o que não é; o que somos e não fomos, o que perdemos e podemos encontrar, o que nos é essencial e dispensável. Sim, é um limbo, uma linha divisória que separa os pés do chão das ânsias do céu.

Hoje, quase um ano depois, sou outro, tomei decisões, saí do dolce far niente convicto que, com um passo atrás e dois à frente, a vida faz-nos muito mais capazes, mais livres e levemente mais serenos.

8 comentários:

  1. Há qualquer coisa simultaneamente doce e marota neste texto.
    Não sei o que é, só sei que combina com os teus olhos... :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Aqui não há absolutamente nada de maroto, Tuxa. Muito longe disso... :)

      Eliminar
  2. Admiro a tua coragem em enveredares numa viagem solitária e com objectivos mais que concretos, sérios e compreensíveis. A perspectiva do egoísmo é muito relativa, pelo menos do meu ponto de vista. Há momentos em que necessitamos de nos isolar, de nos escutar e tal só é possível através da clausura, seja ela, num paraíso longínquo, ou mesmo no nosso espaço, embora compreenda que a evasão condiz com o afastamento do que nos é familiar, sob pena de não resultar de todo.
    Também já o experimentei, embora acompanhada, porque nunca me senti suficientemente corajosa e capaz para o levar a cabo solitariamente. Tive a sorte da companhia perceber o momento que passava e respeitar os meus momentos de evasão e descoberta interior que me fizeram tão bem e me encorajaram e mostraram caminhos novos e decisões que só naquele contexto conseguiria tomar.
    Que a serenidade continue e o reencontro se mantenha.
    Beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Hoje posso afirmar que foi a decisão mais acertada que tive no ano passado. Pouca gente percebeu, mas foi o início de uma grande mudança, uma enorme mudança que culminou há pouco tempo numa nova vida.
      Muito obrigado pelas tuas palavras encorajadoras, beijinho :)

      Eliminar
  3. Só a fotografia já é só por si evasão.

    Compreendo o teu desejo e festejo a realização da tão ansiada fuga. Nunca seria capaz de a levar a cabo, mas desejei-o milhares de vezes.

    Viva a liberdade.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Uma coisa é viajar por obrigação; outra, por necessidade interior de evasão. Parece complicado, mas hoje dou graças a Deus pela decisão.
      Obrigado, Virgínia.

      Eliminar
  4. Quando sentimos e fazemos, por nós ou pelos outros, não temos por onde nos arrepender. Mesmo que o resultado seja oposto ao que previamos.
    Mas quando o resultado é aquele (!)...não há melhor recompensa.
    Bem haja quem sente e faz.
    Beijinho Paulo

    ResponderEliminar