© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

a esfera leve

Parece constructo, frase feita, mas quantas não há que quando sentidas na pele se assumem como verdade absoluta na práxis comum? O peso pesa do corpo para dentro e do corpo para fora. Pesa de manhã cedo, quando a noite ainda existe real, pesa no pão com manteiga que trava na garganta, nos relacionamentos de carácter diverso, na voz que não ecoa e nos olhos que se arredam, nos passos que tremelicam do alto de um corpo que passa, nu ou vestido, sente-se lá. Mas pesa, pesa mais a sério quando é preciso sair e soltar. Quando a tarefa é ânsia que nos olha e não se pode falhar, nessa hora é preciso estar leve. É pelo excesso que a nossa verdade se assume sempre como única, que andamos todos depressa demais, ar vazio, palavras mortas, que o mundo segue a desoras imiscuído em corpos cheios de tudo e disponíveis para quase nada. Saltar para a esfera externa exige leveza, exige um espaço interno capaz de abraçar, exige a faculdade de sair depois de libertar. É este um dos motivos pelos quais eu julgo fundamental dotar as cirancinhas de liberdade e abstracção, quanto mais cedo melhor. É por isso que eu abomino pais que castram vocações e impingem ocupações, mundos que acabam com sonhos, professores que insistem que o céu tem de ser azul e as flores precisam de nascer do chão, que não permitem uma evasão, que apenas valorizam o rigor do manual. É por isso que eu considero que disciplinas como a filosofia deveriam vigorar, devidamente adaptadas e eventualmente remodeladas, bem mais cedo no programa escolar. A abstracção nasce connosco, mas a estimulação orientada peca por tardia (surge demasiado tempo depois do brincar); o concreto agarra-nos todos os dias, o corpo enche cada vez mais cedo, os lugares de vazio existem menos, e em cada passo pesamos mais. O peso em excesso não nos mata, nada disso, isola-nos "só". Coloca-nos na esfera pesada, demasiada, para irmos além.

Ironicamente, não raras vezes, sigo a multidão: andamos todos em conjunto, iguais na diferença, muito mais do que a sensatez nos deveria permitir. No lago negro do fundo, ninguém nada. Na tona, mantém-se a ilusão.

2 comentários:

  1. De uma forma mais ligeira eu costumo dizer : "Não sejam tão sérios!" ;)

    Mais uma vez um texto bonito, interessante, verdadeiro e ... bem escrito!
    Beijinho,

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    1. A seriedade exagerada é sempre um exagero. O ideal? Quanto a mim, o meio termo, o tal local da virtude, uma libertação frequente, o conseguirmos soltar e receber. Caso contrário, tudo me parece escuro...

      Obrigada Maria João. E um beijinho... :)

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