© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 30 de julho de 2013

porque é assim

Apaixonar não tem particípio decente, descura o pretérito, escarnece o futuro e carece de gerúndio. Aliás, apaixono-me, apaixonas-te, apaixona-se e parou. Tudo no presente do singular. Ninguém se apaixona no plural: nós os dois nunca nos apaixonámos ou nos apaixonaremos. Exortar paixão padece de uma singularidade muito própria e presente, jamais, a cada tempo, correspondida ou subordinada. Paixão vem de um só canto, não é transmissível, não segue para além de mim, de ti, dele ou dela. É coisa de eremita, de hedonista estóico, de um único ser. É construção solitária. Faz-se e desfaz-se no âmago de cada um sem necessidade de consulta prévia. Devidamente cuidada e alimentada é produto da sua própria insistência, não está condicionada pela empatia ou antipatia alheia. Tudo o que se lhe reflecte detém-se impotente: é um outro mundo, à medida dos nossos anseios e acometimentos, que se faz inalcançável. E quando se esboroa, será sempre porque a ela se segue outra. Mais espectacular e repleta de desfaçatez. Porquê? Porque é assim.
 
Amor é outra coisa, é o pote cerrado no fim do arco-íris. É vírus estranho e externo, vem lá do norte, vem quando dele já estamos desprecavidos e esquecidos. Amar conjuga-se de todas as formas e feitios, estira-se regalado pelo gerúndio, espraia-se pelo plural, percorre todos os tempos mais-que-perfeito e, brioso, avança para o imperativo. É sismo interno à pele e às entranhas; libertação incontrolável de energias opostas que nos predispõe bovinos contemplativos. É epicurista de berço, mas é sobre a dor que mais e melhor se alonga, mais e melhor se define extrínseco, surgindo como forma maior que reabre o Divino, onde o culto é lúbrico a nós dois, ao dístico das nossas identidades, tornado uno e indivisível. Como qualquer ser inerte sem hospedeiro, não passa de prosa ou de vã filosofia crivada pelos tempos em papiros empoeirados já esquecidos, mas, como qualquer ácido nucleico, encontrando quentura e frequência cardíaca, se propaga em surtos ciclicamente pandémicos, exalando torrencial harmonia e felicidade.
 
Por isso mesmo, paixão pode ser só problema meu, mas amor será sempre um problema nosso.

16 comentários:

  1. Costumo dizer (e sinto no seguimento que ninguém me entende), que não acredito em amores unilaterais que parecem não morrer nunca. Exactamente por achar que o mesmo só é possível em perfeita sintonia. A unilateralidade será outra coisa. Paixão, teimosia, fixação, um outro nome, não interessa o baptismo...

    ( Bom Paulo, mas que grande, grande texto, deixa-me que te diga... :)

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    1. Foi precisamente isso que quis vincar: cada um de nós pode, sozinho, ter a sua paixão, mas amor implica reciprocidade, mesmo com o Divino.

      (Obrigado :)

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    2. Quantas mães amam os maus filhos que têm?
      Amor de mãe é incondicional e não espera retribuição.
      Ao contrário de si, para mim, a paixão também pode ser singular. A paixão pelo trabalho, pela política, pela escrita, por "aquele homem ou aquela mulher, qualquer deles especial", independentemente de ser ou não retribuído. É o que se passa quando dizemos: "apaixonámo-nos loucamente".
      Muito nós discordamos, meu caro Paulo. Já viu o que seria um jantar entre pessoas tão diferentes?!
      Abreijo

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    3. Mas, Helena, eu escrevi precisamente que a paixão é predominantemente singular e que, ao contrário do amor, não carece de reciprocidade. Quanto ao "amor de mãe", amor filial, é diferente. Ninguém escolhe as mãe ou o filho que se tem e, mesmo assim, por muito que nos espante, pode não ser incondicional.

      Asseguro-lhe que um jantar, ou outra partilha qualquer, entre pessoas tão diferentes (seremos?), seria um experiência primorosamente fascinante. Um festim sem fim à vista, um tango em jeito de duelo, um desafio impossível de não aceitar.

      Um só beijo, para acentuar a diferença... :-)

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  2. Mas explicar o amor é "tarefa vã". Certo? Apesar de ser magnífica a metáfora do "pote cerrado no fim do arco-íris" e outras coisas mais...

    Beijinho :)

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    1. Acho que o amor pode e deve ser explicável, sim, de acordo com o que cada um sente e acha, por mais ridículo que seja (e eu não me importo nada de ser ridículo, como percebeu). Muitas vezes vejo pessoas que se furtam ao tema; acham-no excessivo, demasiado misterioso, patético ou, como diz, impossível. Muitas vezes vejo nelas medo; outras, não saber o que dizer. Óbvio que respeito quem não se quer expor, mas isso é outra coisa.

      Beijinho :)

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    2. Concordo completamente consigo, embora julgue também que às vezes o que se passa é que o que se sente é irredutível às palavras. "Tarefa vã" entre aspas , Paulo, porque são palavras suas. Aqui: http://isabelmouzinho.blogspot.pt/2013/07/paixoes-proibidas.html#comment-form

      No fundo é a na distância entre o que se vive e o que se sente e não se consegue dizer, que fica o mais importante. É mais ou menos assim...

      Beijinho :)

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    3. :)) Claro que sei que era expressão minha, mas sabe onde reside o encanto do tema? Permanentes desenvolvimentos e subsequentes contradições, sem que com isto se abra alguma caixa de Pandora. E mesmo que se abra sobra sempre, tal como a mitologia, um quesito inquestionável: a esperança!

      Beijinho :)

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  3. Adorei a pespectiva bem poética... Na conclusão, fico-me pelo "nim"! :)

    Isabel BP

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    1. Obrigado, Isabel. Esse "nim" é não saber muito bem, é depender ou é transigir...?

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  4. Caro Paulo,

    Não estou a conseguir responder a seguir à questão que me colocou.

    O meu "nim" é porque considero que tanto paixão como amor podem ser um "problema só meu", sem qualquer retribuição, e nunca chegar ao estado de "problema nosso".

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  5. Faltou assinar :)

    Isabel BP

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    1. Isabel, convenhamos que este assunto está sempre muito longe de estar fechado. Cada um de nós encontra no amor ou na paixão os seus próprios significados. Apenas escrevi os meus e acredito em todos os outros...

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  6. Os meus amores e as minhas paixões ....
    Uns amores, e ums paixões, são unilaterais e é mesmo assim que têm que ser.
    Outros amores, e outras paixões, só sobrevivem no plural! ;)

    A fotografia é lindissima!

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    1. E muitas ainda são erros de denominação... :)

      A foto representa um pouco a azáfama da vida entre duas margens. Obrigado, Maria João.

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