© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A entropia da sobrevivência



Precisava com urgência de lhe descobrir defeitos e pouco importava de que espécie ou género fossem. A ideia era: célere e qualquer um. De carácter, de moralidade, de sentimentos.
 
Em 15 de Outubro foi asquerosamente injusta comigo, recordou. Quando chegamos a casa deu primeiro comida ao cão e só depois de se desmaquilhar perguntou quem ia fazer o jantar. Um desmazelo imperdoável, sabia que eu não tinha almoçado nem ingerido nada durante todo o santo dia. O descuido era letal? Não, as bananas e os peros no cesto olhavam-me com salutar apetite. Então, seguiu para o dia 11 de Dezembro. Nesse fatídico dia, ela insinuou que eu desprezava as criancinhas dos outros. Uma infâmia, um disparate, uma sentença maldosa, recordou. O Duarte, filho da Cristina, bateu com a bengala de pau-santo e encastres de marfim no pug, meu cãozinho, uma doçura-de-morrer. Quando vi aquilo, fulo, dei um grito tão forte ao puto que este inverteu os beicinhos sorridentes e, em lágrimas grossas a jacto, se enrolou nos cortinados. Pouco depois, ao almoço, enchi o meu copo com a última Coca-cola da garrafa e perguntei se ele, o puto charila, não queria aguinha da torneira. OK, concedo: primeiro as criancinhas e depois os cães. Mas… calma, e no referido dia 15 de Outubro? Primeiro os cãezinhos doçuras-de-morrer e depois os namoradinhos sem comer o dia inteiro…? Pois, mas havia as safadas das bananas e os imbecis dos peros que me fitaram gulosos em pirâmide.
 
Uma chatice. Seguiu então consecutivamente em busca de mais dias e de outros desapontamentos. Aliás, os desaires averbados em sua memória pareciam sortidos e, certamente, um seria suficiente. Suficiente e necessário, que ela era uma insensível, uma déspota dos afectos, uma tirana que lhe visitava as noites em branco. Precisamente numa dessas noites, em profunda apneia de ideias, saltou da cama: eureka!, defeitos físicos, é isso. Com uns sorrisinhos à Mutley, foi ao extenso arquivo de fotos da sua mais-que-tudo e começou a vasculhar. Ansiava encontrar uma em que ela surgisse com um olho meio fechado, uma madeixa de cabelo virada ao alto pelo vento, um herpes labial, uma borbulha encarniçada purulenta no meio, qualquer coisa que a enfeasse duma forma atroz, repugnante, bruxuleante. Depois, memorizava-a visualmente, melhor, inseria-a na galeria de imagens do smartphone, ou ainda melhor, fazia-a ecrã de fundo… Eheheh, um chaço ao toque de uma chamada, pensava com os olhos raiados de rábia.
 
Em vão. Susana nunca lhe surgiu suficientemente desengraçada para que constasse na engenhoca. Em boa verdade aparecia-lhe sempre linda de morrer; em grande verdade, era mesmo linda de morrer. Ao vivo e no ecrã, Pedro estava condenado a viver com a figura de uma estampa e a justeza, a inteligência e a doçura de uma Mulher. Da sua mulher. Que lhe havia de dar finalmente a tranquilidade das noites. Até porque se não podes com ela, junta-te a ela. Cogitou ainda, ardiloso.

7 comentários:

  1. Meu caro Paulo
    Belo texto.
    O rapaz que não se alimenta, pese embora fruta lhe sorrir. A moçoila, linda de morrer, que se embeiçou pelo rapaz, mas lhe perdeu o apetite.
    A vida, a tentar ensinar o rapaz a comer. O happy end fatal do "se não podes vence-la, junta-te a ela". E nós a dizer that's life!
    :-))

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  2. Estou como a Helena: é um belo texto, sim, Paulo, naquele estilo tão seu a que já nos habituou.
    Desta vez gosto especialmente da construção a duas vozes, na alternância eu/ele (narrador e personagem) que no fundo são o mesmo, na vivência emotiva do momento e na análise mais distanciada feita à posteriori. Entre uma coisa e outra fica a constatação de que há amores que são como uma inevitabilidade a que não pode escapar-se e que, nesse caso, nada como "baixar a guarda" e render-se...

    E depois há estas fotografias que me deixam sempre, por uns minutos, de olhos arregalados e sem palavras. Adoro!..

    Beijinho :)

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    1. Não fosse a Isabel uma Professora de Português e diria que a sua interpretação é excelente. Apenas com uma ressalva: a personagem e o narrador (eu) não são a mesma pessoa. Digamos que sejam apenas muito chegados...
      Muito obrigado pelas amáveis palavras, a Isabel é uma querida.
      Beijinho :)

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  3. Procurar defeitos que nos salvem do amor é uma pura ilusão...

    ( Olha, voltaste...:) E que grande regresso...)

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    1. As técnicas de auto-convencimento são instrumentos poderosíssimos na mente humana. Já vi gente matulona que se acha pequenina ou maus feitios que se acham santinhos. Pura ilusão? Toda a gente prefere a ilusão à desilusão... :)

      (Olha, desde o início que disse ter sido mal interpretado - culpa minha, também admitida)

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