© Paulo Abreu e Lima

domingo, 16 de novembro de 2014

empratar

As causas a que nos entregamos podem ser nossas ou vir simplesmente emprestadas. Podem não nos pertencer de raiz mas brotarem-nos nos gestos como um bicho que se aloja e nos invade sem cura que valha, porque a dimensão é de carácter maior, o que também funciona. Consigo distinguir facilmente estas pessoas, todos conseguimos. Sabemos claramente qual o médico que cura para além do dever, o professor que tem fé nos alunos e nas palavras fora do manual escolar, o actor de teatro que expele quem vive por todos os poros, o enfermeiro que toca antes de cuidar. Na psique humana, por exemplo, jamais chegaremos ao local procurado se não bebermos o caminho que necessitamos de percorrer. Jamais encontraremos a raiz da emoção se não a procurarmos com presença, jamais conseguiremos validar um sentir se não o sentirmos, nunca indagaremos adequadamente se não estivermos atentos, uma impossibilidade se não habitarmos ali, aquele exacto momento. Hoje em dia e em tempos de crise, afiguram-se dificuldades sérias neste campo. Há uma necessidade de subsistência que supera, naturalmente, a questão da entrega, e o dever nasce como um fim em si mesmo, afastando quase por completo a vocação, a vontade, o nosso Eu. O custo deste abandono é significativo para quem pratica e para quem recebe, e temo que em termos de evolução social possa deixar determinações importantes. A quebra da confiança,  por exemplo, é só uma delas, e coloco aqui a experiência da culinária, como mera ilustração: quem cozinhe com paixão jamais me colocará propositadamente um mau elemento no prato. Quem o faça por obrigação poderá colocar ou não, depende dos recursos disponíveis na hora do empratamento. 

6 comentários:

  1. Brilhante CF!! Pena que não haja mais comentários, pois esta sua análise do comportamento humano é completa e diria incisiva. Quando não se dá tudo com alma, não se chega a dar nada.....

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    1. A alma é mesmo a essência Virgínia, e se não estiver na profissão ficaremos sempre aquém.

      Muito obrigada pela simpatia...

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  2. CF
    Ora aí está. Há peritos em empratar o que não presta. Poderíamos aqui cita-los em variadas profissões.
    Prefiro uma boa comida tirada de um tacho que vem à mesa. Não é bonito, não responde aos cânones da boa educação, mas é aquela que sabe melhor.
    Perceber esta diferença, no espartilho das convenções sociais e ter a coragem de a praticar, é que é difícil. Mas, cada vez mais necessário.

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    1. Também eu prefiro, e de longe... :) Mas e agora os caminhos, com todo o espartilho que refere e com outras inúmeras questões sociais? Perdemos tanto do que é realmente bom e bem feito... Do lado do eu e do lado do outro...

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  3. Cf
    Julgo ser alguém que diz o que pensa e que em muitas ocasiões foi contra as convenções ba busca da sua felicidade. Não me arrependo de nada. Bem pelo contrário.
    Tudo o que nos torna felizes tem um preço. Eu sempre preferi paga-lo, mas não perder o que realmente valeu a pena. O custo foi alto, mas nunca me queixei, porque o essencial não tem preço!

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    1. As nossas convicções são o que de mais importante nos conduz... Por elevado que seja o preço, concordo consigo, completamente...

      Um beijinho, Helena.

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