© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

maria, natália, eduarda...

Na mais pura das incompetências, julgo que entendo sempre quem me procura. Foi exactamente o que aconteceu com Maria, quando há bem pouco tempo se sentou à minha frente. Chorava baba e ranho, esfregava o nariz encarnado com as mãos, soluçava ininterruptamente, engolia as palavras que tanto me queria dizer, entre um choro e o outro, enquanto mastigava saliva em excesso azedada de vergonha, de zanga e de medo. Entrei mais ou menos onde devia, abri as portas emocionais, escutei-lhe o tremor do corpo, a voz das lágrimas, as frases inteiras que lhe saiam do abanar dos pés. A pouco e pouco, depois de quase uma hora de despejo, saiu mais calma. Pelo meio deixou-me a história de uma "infidelidade perdoada", como ela lhe chama. Feita debaixo das suas barbas, ou melhor, dos seus olhos, que barba foi o que ele esfregou na outra, não queremos saber onde. Antes de sair colocou-me a derradeira questão, estava mesmo à espera dela. Se viver com ele no risco da recaída, se seria mais prudente sair, levar os três filhos, procurar outra forma de vida, outra casa, um emprego, quem sabe até um marido fiel. Deixei-a sem resposta, claro, não há resposta pronta para estas questões que insistem em colocar-me. Tem voltado, regularmente, insistindo na dita pergunta, no perdão e na solidão. Normalmente esqueço-a rápido com a pessoa seguinte, quando outra história, semelhante ou totalmente distinta, aparece pela porta adentro, e venho quase sempre com a sensação de dever cumprido: não arrisco no conselho, tenho parcimónia na emoção, absorvo e devolvo o que me parece sensato, dou abraços, estendo mãos, agarro numa almofada que precise de ser esbofeteada, ou melhor, que acolha uma raiva contida em contra-mão. Esforço-me sempre por incorporar tudo, mas a verdade é que se pensar bem, ou melhor, se a vida me colocar na frente da guerra, sinto que não sei nada do que digo, quando julgo que alcanço tanto. Isto traz-me uma sensação de mediania que me assusta, e uma certeza de que na realidade, quando julgo alcançar a dor de Maria, estou ligada ao meu mundo, sabido e conhecido. Não ambiciono entendê-la, tenho medo de a descortinar totalmente, espero nunca sentir a tentação da partilha, que encontro tantas vezes num trâmite conhecido. E quem diz Maria, diz Natália, diz Nélia, diz Eduarda, todas com a sua história. Mas hoje, sem saber bem o porquê, simplesmente lembrei Maria.

6 comentários:

  1. Quando me separei do meu ex-, a minha sogra apontou-me com azedume e até algum ódio: O M. nunca lhe bateu, nunca a traiu, a V. foi sempre o grande amor da sua vida, não sei por que razão o vai deixar. Não tem qualquer desculpa. Pensou que eu teria outro homem e que iria ser feliz lá fora. Os filhos apoiavam-me, o que ainda lhe fazia mais impressão.
    Há mil e umas razões para se deixar um homem, mas é preciso segurança financeira para o fazer. É essa insegurança que ata muitas mulheres a homens que não as merecem ou pura e simplesmente deixaram de ser bons para elas.
    É rao os homens largarem as mulheres só prque sim. Em geral, há sempre outra mulher - ou uma mãe - nas suas vidas. Quanto às mulheres, chegada a meia idade, o desejo de libertações é mas forte que o casamento, as tradições, as memórias. Querem viver, respirar, sair da teia em que se meteram. Apoio-as incondicionalmente.

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    1. Concordo consigo... O problema é que para elas, é sempre tudo mais difícil de conseguir...

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  2. Por vezes queremos tanto que alguém nos dê uma resposta milagrosa! Na realidade o que precisamos é de entender que estamos em busca de algo que não existe. Uma justificação, uma promessa, uma certeza, um milagre...
    Ouvir é tão difícil...confesso que ouço melhor os outros que a mim própria. Por isso as vezes também sou uma Maria á procura de quem me oiça. :)

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    1. Fez-me rir, Maria João... :) Também eu por vezes necessito tanto. Nós na psicologia somos como os palhaços, os cozinheiros ou os advogados. Toda a gente julga que não precisam de rir, de que cozinhem para eles, de que os defendam... É tramado, pode crer...

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  3. CF
    Gostei muito deste seu texto.
    De facto, psicologos, psicanalistas, analistas, todos foram treinados para ouvir, compreender. E, no limite, questionar sem sugerir. Mas esperando que do outro lado se possa fazer luz. Própria.
    O nó surge quando "somos nós". Quando o monólogo se instala e a nossa "estória" se assemelha à da Maria, da Natália, da Eduarda...
    Bjo

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    1. Helena, é um facto. Por vezes, em sobrecarga, surge-nos a ideia, terrível, de que em caso de necessidade de escuta, ninguém nos sabe ouvir. Quando na realidade, muito antes de profissionais somos pessoas, com história. Por vezes boa, por vezes má... Aqui é de extrema importância o trabalho individual que cada profissional deve fazer antes de tentar trabalhar com outras pessoas. Só uma pessoa minimamente "organizada", pode encontrar histórias semelhantes à sua sem que isso interfira no processo. É complexo...

      Obrigada. Um beijo para si também...

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